Tem livros que insistem em nos largar

Tem livros que insistem em nos largar

Livros

 

Timur Vermes , autor de Ele Está de Volta
Timur Vermes , autor de Ele Está de Volta

Tem livros que insistem em nos largar. A gente se esforça pra gostar, volta, relê, mas não adianta: o livro não vai. Quando bati o olho em “Ele Está de Volta”, de Timur Vermes (Intrínseca), foi atração imediata. Sei que não se julga um livro pela capa, mas essa era muito boa. O fundo é branco. No alto, apenas o nome do autor, em vermelho. Abaixo disso, em preto, um desenho que remete imediatamente ao penteado de Adolf Hitler. E abaixo, no exato local (e também no formato) do bigode do ditador, o título: “Ele Está de Volta”.

A capa sintetiza o ponto de partida do romance: o füher reaparece num terreno baldio de Berlim, fedendo à gasolina e sem recordação do que aconteceu. Ele não sabe onde está Goebbels, Göering ou Eva Braun. Lembra, vagamente, que os tanques russos avançavam pela capital derrotada do Reich de Mil Anos, mas é só. Um começo promissor.

Só que Timur Vermes confunde “tema” com “trama”. Hitler no século 21 é um bom tema, mas não chega a ser uma trama. E aí, como não tem uma história pra contar, o que sobra são longuíssimas observações de Adolf Hitler sobre a decadência do mundo e da Alemanha, em particular. Lá pelas tantas, você começa a suspeitar que o autor simpatiza demais com as ideias do personagem. Se ele simpatizasse com as fraquezas humanas do ditador, tudo bem. “A Queda”, de Oliver Hirschbiegel, com Bruno Ganz no papel de Hitler, é um grande filme justamente por isso. O führer, comanda exércitos imaginários e tem acessos de fúria ao perceber sua impotência. Bruno Ganz faz um Adolf Hitler derrotado, destruído, desencantado. O monstro reduzido à sua patética e ridícula dimensão humana.

Na época, teve quem criticasse o filme por humanizar o ditador. Bobagem. O Partido Nacional Socialista não era comandado por um bando de alienígenas ou super-vilões. Os nazistas eram criaturas banais. Eram padeiros, sapateiros, salsicheiros. Eram criaturas tão banais que banalizaram até a morte, daí a guerra e os campos de extermínio. Era só pompa e circunstância pra esconder a sociopatia. Adolf Hitler não gostou nem um pouco de “O Grande Ditador” (1940), de Charles Chaplin, que o retrata como um bufão megalomaníaco. Os fanáticos temem o humor justamente pelo caráter dessacralizador dele, pela capacidade de revelar o ridículo em todos nós.

Só que não é isso o que Timur Vermes faz. “Ele Está de Volta” foi vendido como “sátira” em mais de uma resenha, mas passa longe disso. Bem longe. Sátira é comédia da vingança. Se um homem escorrega numa casca de banana é circo. Se um homem de cartola escorrega numa casca de banana é sátira. Comédia de vingança, percebe? Mas o que o Vermes faz é só uma bobagenzinha sem noção.

Ok, Aran, já sei o que ignorar, mas tem alguma coisa pra ler? Tem sim. Ainda sobre sátira. Douglas Adams, autor do “Guia do Mochileiro das Galáxias”, ganhou uma espécie de biografia, “Não Entre em Pânico”, escrita por Neil Gaiman (Novo Século). A autoria de Gaiman é meio marota. Ele mesmo confessa no prefácio que dez capítulos não foram escritos por ele. De qualquer forma, o livro traz cartas e textos de Adams e uma boa análise do humor do autor. Leia junto com a coletânea “Salmão da Dúvida” (Arqueiro), que tem textos de Adams agrupados pela primeira vez em livro. E releia sempre o “Guia do Mochileiro das Galáxias”. Eu faço isso sempre, junto com os livros de Woody Allen e o “Garotos da Fuzarca”, de Ivan Lessa (Cia das Letras).

Saiu também este mês o primeiro volume de uma das melhores séries de quadrinhos da atualidade, “Manhattan Projects”. O lançamento é da Devir e o título em português vem no singular, “Projeto Manhattan”. O texto é de Jonathan Hickman e os desenhos são de Nick Patarra. Hickman é um dos arquitetos da Nova Marvel, teve uma passagem brilhante pelo Quarteto Fantástico e hoje toca dois títulos dos Vingadores. “Manhattan Projects” é um trabalho independente publicado pela Image, o que dá ao autor muito mais liberdade para enfiar o pé na jaca. E ele enfia.

Jonathan Hickman
Jonathan Hickman, autor do texto de Projeto Manhattan

O Projeto Manhattan, você sabe, foi uma pesquisa científica verdadeira para desenvolver a bomba atômica. Hickman parte daí, mas desvia pro surrealismo: e se a bomba fosse apenas a criação mais banal (esta é a palavra do dia!) do Projeto Manhattan? E se os cientistas estivessem metidos em atividades muito mais sombrias e ambiciosas? E se eles tivessem descoberto mundos paralelos, conquistado a Lua ainda nos anos 50 e mantido contado frequente com alienígenas? E se o Projeto Manhattan tivesse se convertido num “shadow government” que forjou o pouso da Apollo 11, inventou uma falsa Guerra Fria para esconder sua colaboração com os soviéticos e assassinou John Kennedy quando ele resolveu se intrometer na história?

Hickman usa personagens reais: Albert Einstein, Robert Oppenheimer, Robert Fennyman, Wernher Von Braun, Yuri Gagarin. Todos eles várias doses acima do resto da humanidade. Einstein é um bêbado que sofre de amnésia. Von Braun é um nazista psicótico que faz qualquer coisa para manter seus foguetes no ar. Gagarin não consegue viver sem a cadela Laika. Oppenheimer é esquizofrênico e serial killer (ou, pelo menos, uma de suas personalidades é). Isso sem falar dos políticos. Harry Truman é um maçom patético. John Kennedy é um viciado em cocaína que só pensa em vagabundas. Che Guevara odeia pobres. Fidel Castro também odeia pobres, mas despreza principalmente os marxistas, com quem é forçado a trabalhar.

As tramas de Hickman são de entortar a cabeça, mas tudo é narrado com muito bom humor, que é valorizado pelo traço caricatural de Nick Pitarra. É difícil imaginar um quadrinho como esse no Brasil. Ou até mesmo o livrinho ruim do Timur Vermes. Imagine Getúlio Vargas acordando esta manhã no Rio de Janeiro, sentindo uma dorzinha no peito e uma vontade doida de dar uns pegas na Virgínia Lane. Quanto tempo o livro leva para ser proibido por algum juiz metido a besta. Hein?