A esperança não apenas já morreu, como começa a cheirar mal

A esperança não apenas já morreu, como começa a cheirar mal

Os extremistas vão fazendo escola. A coisa toda da crueldade começa bem cedo. Lembro-me, por exemplo, de uma história indigesta da minha meninice, quando um bando de pirralhos substituiu com esperma o catupiry de uma empadinha, e obrigou que um garoto do colégio degustasse a iguaria adulterada sob a sua mira implacável. Pura traquinagem de criança, deu pra notar? A sofisticação em brutalizar só toma corpo com o tempo.

Câmaras de gás? Fornos crematórios? Bobagem. A moda agora é picar as carótidas do inimigo usando canivete e fazer com que ele sangre feito gêiser sob a lente de uma câmera que a tudo capta enquanto se decapita. Recentemente, certos bárbaros nada doces inovaram ao trancarem um sujeito dentro de uma jaula e nele atearem fogo até que derretesse junto com as lágrimas dos telespectadores. Teve gente que chorou de rir com as cenas, afinal, foi feita justiça, e os discípulos de Satã, mais uma vez, pagaram o pato, tiveram só o que mereciam. E eu que pensava que as fogueiras da Inquisição seriam uma vergonha estacionada no passado.

Hoje em dia, grupos religiosos bem articulados para o mal queimam a rosca de gays fanfarrões empalando-os com baguetes fumegantes recém-saídas de um forno. Eu li na mão de uma cigana que uma facção de crentes ortodoxos obrigou que uma bela virgem que lia poesia ocidental num tablet — pecado considerado dos mais graves naquele inferno — corresse nua sob uma tempestade de vidro moído. Não se admirem se, um dia, um estupro coletivo for transmitido, ao vivo e sem cortes — a famigerada versão do diretor — para provar ao resto do mundo, de uma vez por todas, que Deus é amor; e a mulher, um mal necessário.

Não é preciso ir tão longe assim: no Brasil, as milícias governantes que ocupam comunidades inteiras, volta-e-meia, abrem os portões para que matilhas de balas perdidas escapem e encontrem os corpos de velhos, grávidas e crianças que insistem em sair às ruas como se fossem livres. Não somos livres. No máximo, arrotamos prepotência ao vencermos uma reles prisão-de-ventre. Não lhes parece uma merda: sequer podemos dizer aquilo que sentimos e pensamos, sem corrermos risco de morte.

Enfim, nota-se que as pessoas se amarram em andar em grupos. Eu, por exemplo, ultimamente, me agrupei a certos fantasmas do passado, uma legião de almas penadas que não têm apreço algum pelo homem, ao contrário, sentem por ele, quando não um ódio contido, um desprezo dos mais desconcertantes. Dói queimar os dedos na frigideira enquanto se frita um ovo. Dói muito mais admitir que o ser humano não tenha conserto. Arder numa fogueira, nem lhes conto: já fui bruxa noutra vida.

Eu sei que Jesus me ama, que a vida é dura pra quem é mole, que o crime não compensa, que a esperança é a última que morre, que só o amor constrói, que o bem sempre vence no final, que depois da tempestade vem a bonança, que o futuro a Deus pertence, e que alguém já saiu pra buscar Prozac na farmácia. Mas, ando com asco da humanidade.

Há poucos dias fiz esse desabafo numa confraria e fui saudado com uma tigela de chumbinho para ratos, ofertada como se fora caviar por um dos convivas. O velhote me esconjurou. O restante dos comensais protestou contra a descortesia e o sujeito acabou banido daquela turma, o que não deixava de ser mais um ato impensado e atroz. Quem agora trocaria as suas fraldas? De minha parte, estou cagando e andando. Assim como ele, só que sem fraldas.