Eu queria ser Clint Eastwood para dar um tiro na sua cara

O calor que tem feito esses dias deve estar cozinhando os meus miolos. Um sujeito chegou perto de mim e disse me passa a carteira. Mesmo com o trabuco na mão, eu não passei a carteira porque não ando com carteira. Entreguei uma mochila com coisas de pouco valor como livros, um kit de barbear e um pacote de camisinhas. Não leio, não me barbeio e não meto há tempos, desde sábado. O cara montou na garupa de um cavalo, digo, de uma moto na qual um comparsa o aguardava, e ambos vazaram dali mais rápido que o evacuar de um ganso.

Eu queria ser Clint Eastwood para dar um tiro na sua cara, foi o que eu pensei. Aliás, eu tenho pensado muitas coisas inusitadas ultimamente, como aprender o idioma russo, dar o rabo e comprar uma arma. Porém, tudo não passa de especulações da minha mente cansada com tanta iniquidade. O velho Clint não se deitaria com outro homem, nem fodendo. Será que só eu surtei ou essa sensação de estar de saco cheio com a humanidade pode se tornar, quem sabe, uma unanimidade?

Comentei o ocorrido com um amigo jornalista que — pasmem — me pagava um lanche, e ele riu à beça daquela história maluca de língua estrangeira, sodomia e artilharia pesada, embora ele mesmo, há dois anos, tenha sido vítima de um roubo na república onde morava com uns colegas. Durante a confusão, um dos seus amigos tomou uma azeitona no bucho, que não o matou, mas dizimou a amizade do grupo. O meu provedor, que acabara de ser pai e me ofertava umas esfihas-de-placenta, veio com uma história de que eu era uma moça, um homem tão gentil que não seria capaz de matar um dia de trabalho, que dirá, um ser humano. Sei não. Sabe aqueles dias em que você acorda com uma vontade danada de arrebentar a cara de alguém? Não sabe? Putz! Então, eu pirei mesmo.

Com tanta roubalheira institucionalizada, matança nas ruas e a impunidade grassando em todo território nacional, comentamos a respeito do brasileiro que fora preso, julgado e condenado em amnésia por tráfico de deputados federais corruptos dentro de caixas de Pandora, cuja pena capital consistia em o preso nadar os cem metros livres dentro de uma piscina de escorpiões. Os asiáticos são estranhos, mas fazem valer as suas leis e adulam os lacraus.

Mesmo sendo um país infestado de crentes e pessoas de bom coração com idoneidade ínfima, eu ouvi mais de um milhão de vezes que o traficante brasileiro recebeu o que merecia. Houve quem defendesse com veemência a importação imediata dos aracnídeos para o país, para serem semeados principalmente naqueles espelhos d’água pomposos do Plano Piloto em Brasília. Eu disse ao meu amigo mão-aberta que coisas como aquelas há tempos não me faziam sentir tão só no planeta, desde que fui banido do cárcere uterino da mamãe e expelido pelo túnel do parto feito um caroço de abacate.

Por falar nisso, em fatalidades como nascer, o corredor da morte é um daqueles lastimáveis redutos em que um filho chora e a mãe não escuta. Nós dois tínhamos tempo de sobra até que o enxame de automóveis se dissipasse das ruas, a fim de retornamos para casa sem nos sentirmos tão miseráveis ao volante. A hora do rush humilha-me à beça.

Então, tomei emprestado o rascunho da carta de despedida de um suicida inapetente que nada comia na mesa ao lado senão o pão que o diabo amassou, e anotei no verso do papel as coisas que faria para matar o tempo no corredor da morte. Balançando a cabeça em sinal de desaprovação e desânimo, o meu amigo da revista fazia uma leitura particularmente generosa daquele meu surto criativo. Ele simplesmente não interrompia, nem me deixava sozinho. Enquanto arrotava placenta, eu escrevi.

Eu não teria um filho, não plantaria uma árvore, muito menos escreveria um livro: eu me desesperaria, sem reservas, com um mero pôr de sol. Um melro cantando sobre o muro também seria muito comovente. Eu voltaria a fumar em prol de um câncer que tivesse pressa. Eu aplicaria o golpe do vigário no capelão para escapar da extrema-unção. Eu tomaria um chope com o carrasco. Eu cortaria os meus cabelos com o afiador de guilhotinas. Eu teria um romance com a moça da dedetização. Eu faria de tudo pra morrer de amor. Eu preferiria mil vezes a insônia pra nunca mais ter que sonhar. Que eu fizesse isso (sonhar) acordado, para intrigar a sentinela e ser conduzido a uma junta médica que me julgasse insano, indigno de uma bala sequer de fuzil, portanto, livre, um homem livre para viver as suas maiores loucuras num manicômio judicial com vista para o mar.