Cuidado ao sair de casa! É natal

Cuidado ao sair de casa! É natal

Eu tava dirigindo pela cidade, digerindo postas de melancolia, quando entrou o homem do rádio e disse “Quisera a vida fosse só viola, sem violência”. Bingo! Eu concordei com ele na horinha. “É natal — ele falou — mesmo assim, apesar do enxame de sorrisos apalermados por onde quer que se ande, urge alertá-los, caros ouvintes, que muitos homens não se sentem menos perversos nessa época do ano. Com sede de maldade, eles não cedem às cócegas da truculência, nem que a rena tussa”.

O radialista prosseguia com aquela voz renitente de tia-avó que me dava nos nervos: “Cuidado ao sair de casa! É natal. Se você se distrair, se você se abstrair de amor, pode ser fatal”. A rima do locutor era pobre, mas os conselhos, mesmo gratuitos (e não requisitados por mim, absolutamente), tinham lá o seu valor. Eu podia simplesmente mudar de estação, mas continuei me ajustando ao sujeito. Ele foi falando e eu fui ouvindo. O trânsito, é claro, foi parando à minha frente. Eram as pessoas que iam às compras, famintos em consumir e consumar um novo recorde de vendas para o comércio varejista.

Uma mosca varejeira com arcabouço azul metálico pousou no para-brisas. O homem do rádio dizia pra eu não me enganar, e que a vida era um perigo. Desatou em conselhos pras pessoas escapulirem da periclitante violência urbana que, de fato, andava deixando as coisas meio sem sentido. Ele principiou o corolário. Abre aspas:

Evite sair sozinho à noite pela cidade. Evite namorar no banco da praça. Evite namorar dentro do carro. Se liga em Augusto dos Anjos: evite um beijo após o escarro. Evite namorar atrás da igreja. Na dúvida, evite até mesmo sentar-se no colo de um padre; no máximo, tome com ele umas taças de Sangue de Boi ou Sangue do Cordeiro, tanto faz. Evite o velho erro de passear de mãos dadas com o seu novo amor numa rua escura. A regra é clara: evite levar tiros na cara. Evite usar aquele par de tênis que lhe trouxeram de Miami. Evite usar suas joias no pescoço, madame.

Evite fumar em recintos fechados. Evite conviver com gente de mente fechada, sejam eles fumantes ou não fumantes. Evite demonstrar alegria em excesso (há um sem número de pessoas que simplesmente não suportam alguém feliz; aliás, há os que defendam o linchamento sumário dos bobos alegres). Evite a minissaia. Evite os saltos 15. Evite o batom carmim. Evite expelir seus fero-hormônios por aí. Como alertou aquele deputado neonazista em Brasília, evite um estupro, deixe-o só pra quem merece.

Evite votar em canalhas. Evite barbear-se com navalha (cuidado com a veia-artéria!). Evite falar com estranhos. Evite discussões e baixaria (o panetone é doce, mas muitas pessoas continuam amargas em dezembro). Evite pisar em pescoços (melhor pisar na grama mesmo). Evite declarar-se esquerdista, pois as redes sociais estão transbordando de protestos selvagens a incitarem que criancinhas devorem todo e qualquer comunista.

Evite ler poesia em público. Mais que isso: evite declamar versos, pois vão pensar que você simplesmente pirou ou saiu do armário. Evite assumir o homossexualismo publicamente pois a maioria dos que se dizem tolerantes vão sonhar que lhe arranquem o couro (o veado dos outros é o melhor de todos). Evite sexo anal — ainda que anual — com um anão de pênis descomunal. Evite as rimas e os trocadilhos infames.

Evite os piquetes. Evite os pivetes. Evite os pileques. Evite discursos inflamados durante o amigo oculto. Se estiver muito bêbado, evite dizer a verdade, somente a verdade, nada mais que a verdade, afinal, assim como a família, a mentira é um mal necessário. Evite dirigir a vida dos outros após ingerir bebida alcoólica. Nesse natal, evite confessar que é ateu e que não acredita na igreja romana apostólica, mesmo que o Papa seja um pacifista deveras carismático.

Evite tomar leite de vaca. Evite desenvolver intolerância à lactose, aos negros e aos gays. Evite dizer que todos são iguais perante Deus enquanto você faz tudo diferente. Evite caminhar pela praia se você se sente deprimido e triste. Nesses casos, o mais recomendado é ouvir rock’n’roll em altos decibéis. Evite cordas, árvores, materiais explosivos e instrumentos perfuro-cortantes. Evite cenas que cortem o coração, como uma facada no peito, por exemplo (entregue logo a sua bolsa pro trombadinha, criatura!).

Evite fazer dívidas com agiotas. Evite duvidar dos idiotas, pois eles são numerosos e procriam com celeridade. Evite ir ao estádio com a camisa do seu time. Evite gritar “gol”, melhor berrar “socorro”. Evite passar pela Cracolândia. Evite postar as suas fotos da Disneylândia. Evite a inveja e a maledicência. Evite dançar na chuva com seus cartões de crédito no bolso. Evite raios e sequestros relâmpagos. Evite sacar dinheiro à noite num caixa automático. Evite levar um tiro de uma pistola automática de uso exclusivo do exército brasileiro.

Evite dirigir com os vidros do carro abertos, e beijar de língua com os olhos abertos, e ficar morto esticado num caixão com olhos abertos. Todo cuidado é pouco: evite cantar ao volante quando o semáforo estiver fechado. Evite falar ao telefone celular enquanto estiver caminhando pelas ruas. Evite spams que prometam closes de mulheres nuas. Evite fazer sexo com a vizinha sem camisinha à noitinha depois que o marido deu uma saidinha. Se for escrever um texto, evite ser repetitivo e cansar os leitores. Evite pensar que a maldade descansa só porque é natal. Por fim, evite sonhar mais do que o necessário para se manter vivo no planeta.