Quando eu crescer vou virar criança

Quando eu crescer vou virar criança

Juro de pé junto, viu. Cruzo os dedos. A praga já está rogada por mim mesma, diante do espelho grande do meu quarto que oscila entre alheio-e-alienado.

Envelheça quem quiser, a cada dia que passa. Eu não. Faço caras e bocas e me posiciono ereta desafiando a dona cronologia. Miro com um estilingue bem no meio dos olhos do tempo e pimba! Foi-se a desaceleração da vida, a palidez e tremulações, comuns ao avançar da idade.

Maturescência, emburrescência, senescência essas palavras todas foram apagadas com água sanitária da sisudez dos dicionários. Ah, você vai concordar comigo, saber ser criança e continuar assim, sem empilhar as brincadeiras mofadas num baú velho e triste, não é pra qualquer um.

Tem que ter olhos de diamante, saber fazer e receber cócegas, apresentar mágicas em mãos de fada, seja Sininho ou Peter Pan. Escancarar na boca tenra um sorriso de picolé fresquinho de morango. Travessura mais saborosa essa, com a língua dengosa, esquecida num canto da boca.

Os sonhos de uma criança de 6 ou 60 ou 80 anos devem ser muito compridos. Ostentar inúmeros formatos e texturas. Sonhos de massinha, de bolhas de sabão, de balões de aniversário, de cadernos borrados de lápis de cera, de bonecas e soldadinhos.

Isso, preste atenção, os sonhos precisam se estender a todas as gerações. Sonhos de amar bonito. De cuidar de passarinho filhote. De dar beijo suave nas pálpebras do namorado ou da namorada. De fazer amor como quem brinca de roda na praça dos desejos e fica com a cabeça tonta de tanto rodar.

Muitos ideais também precisam ser costurados aos sonhos.

A ponto de colarem o próprio nariz no céu. Subindo até lá, afoitos e curiosos, montados em pipas ou agarrados em papagaios atados em tecido grosso, resistente a chuvas e trovoadas .

Aconselha-se que as fantasias voem soltas, aladas, embaladas em gratuita e despretensiosa felicidade. (Aliás, felicidade precisa ser explicada?) A imaginação linda e translúcida, flutuando no ritmo das gaivotas e com a cabeça acolchoada em nuvens. Esta é a cena.

Alguém já disse que as nuvens se assemelham a algodão doce. Sorvete de creme ou tapioca. Talvez saibam a chantilly batido. Você escolhe. Porque se estiver disposto a tomar vacina contra a rabugice e os crepúsculos da rotina, como eu já tomei, asseguro que há alguns postos de vacinação logo aí, no bairro aonde mora.

Está certo. Nós sabemos que você hoje tem a altura de um adulto, olhar apreensivo. Compromissos de quem já possui carteira de identidade e CPF. Carrega nas costas um trabalho, crachá e mil tarefas chatas e vazias à sua espera dia após dia.

Calma. Eu também levo todas estas funções agendadas na mochila das responsabilidades. E nem por isso, garanto, serei escrava de rugas, celulite, nem da gelatinosa flacidez . Que se danem as metamorfoses! Kafka virou barata, pra tirar umas férias ex-humanas. Oscar Wilde, no “Retrato de Dorian Gray”, tentou congelar a juventude. Os vampiros e zumbis que nos rondam fazem orgia com a imortalidade. Ainda que ela, a imortalidade, pareça chocha ou sem graça.

Você vai dizer agora que não dá pra crescer e continuar sendo criança por causa dos bandidos. Do tráfico. Da corrupção impiedosa. Do gélido e deslavado cinismo dos políticos. Vai dizer que não dá pra colecionar mais travessuras, nem álbuns de figurinhas debaixo do seu travesseiro porque a maldade, à espreita, ronda as noites. Surge de onde menos se espera. Do mesmo modo que a inveja, a falsidade, as devastações do ódio e do desamor espalhadas à nossa volta.

Acontece que nenhuma criança que se preze quer saber de noites negras e tenebrosas. Das rajadas de vento que de tão cruéis ameaçam virar ciclones. Da falta de água, comida, de abraços, sussurros e beijos. Das dores. Sim, há muitas dores que gemem órfãs e em silêncio.

As crianças, àquelas que, apesar de fortes abandonos e carências, sabem continuar brincando em todas as idades fizeram pacto com a alegria, a solidariedade, a fraternidade escancarada e sem limites. As mãos, mesmo eventualmente ensanguentadas, permanecem abertas, sempre revelando acolhimento a quem se aproxima nas calçadas ou ruas. Pessoas anônimas, talvez borboletas, somadas aos bichinhos todos que também habitam as florestas.

Alguma vez, certamente, uma história contada na beira da nossa cama, quando ainda éramos pequeninos, nos conduziu a uma floresta especial. Lá, cercados por plantas raras, seres elementais, descobrimos também que, além de cobras, leões e lagartos, entrecortavam estas matas densas rios sagazes, saguis elétricos, araras reais e sombras acalentadoras.

Escute, faz apenas alguns anos que percebi que o barato da vida consiste na preservação da saúde e da energia das nossas crianças. Tanto da meninada do lado de fora, como a que brinca de cabra-cega do lado de dentro do nosso corpo, circulando nosso coração.

Descobri que as crianças são antídotos infalíveis de matar o tempo, o tédio, a descrença e o desânimo de uma só vez.

O poeta Manoel de Barros é uma criança grande. A frase-título desta minha crônica é de sua lavra. Esse menino sapeca de quase 100 anos sabe transformar a sua a e nossa vida em um delicioso parque de diversões.

Neste exato instante, aliás, ele nos convida a pegar uma tesoura para descosturar de mansinho o sentido das palavras. Conferir sentido às coisas desimportantes, aspirar o aroma de cada brisa, logo no bocejo das primeiras alvoradas e  conversar de perto com as cores que estão à nossa volta. Vamos?