O melhor livro do ano

O Pintassilgo é um livro belo e estranho, com misturas de tempo, em termos de narrativas, personagens e hábitos

O cartapácio “O Pintassilgo” (Companhia das Letras, 719 páginas, tradução de Sara Grünhagen), da escritora americana Donna Tartt, desconcerta a crítica, mesmo um especialista como James Wood, da “New Yorker”, que não soube apreciá-lo. Os motivos? Aponto um: o romance é uma catedral do século 19 com frequentadores (com hábitos) do século 21. Há um cruzamento hábil, com movimentos rápidos e lentos — simulando um jogo ardiloso, nem sempre visível numa leitura apressada —, da prosa mais convencional do século 19, mais lenta e discursiva, com a prosa experimental do século 20, mais rápida e contida.

Pintassilgo

Donna Tartt escreve muitíssimo bem, arquiteta e amarra sua história à perfeição, mas deixando que as ambiguidades da vida frequentem suas linhas, com pontos não muito bem esclarecidos, e, ao final, faz um discurso filosófico, à moda mais de Fiódor Dostoiévski filtrado por Nietzsche e, quem sabe, Tho­mas Bernhard (que não a influencia, diga-se).

As influências literárias de Don­na Tartt são espraiadas no romance, às vezes às claras, às vezes de maneira subterrânea. Dickens e Dos­toiévski são as influências mais perceptíveis, e em vários trechos. A autora escreveu um romance americano que é filho das literaturas russa e inglesa. O estilo é meio lerdo, como o da prosa russa do século 19, e com personagens (dois meninos, seus pais e um restaurador de móveis) meio dickensianos.

A história é intrincada, às vezes parece não correr, com aparente enrolação (meia russa). Theo Decker visita um museu, nos Estados Unidos, com sua mãe. Há uma explosão, provocada por um ato terrorista, e ela morre. Theo leva do museu o quadro “O Pintassilgo”, do holandês Carel Fabritius (1622-1654) — o pintor morreu na explosão de um paiol —, e recebe de um moribundo um estranho anel.

Inicialmente, Theo vive com uma família rica, em Nova York, e, depois, vai morar com o pai, um escroque, em Las Vegas. Quando o pai morre, num acidente, o garoto volta para Nova York e vai morar com James Hobart, um personagem tipicamente dickensiano, ligeiramente modificado. Há, até, uma espécie de Raskólnikov, o criminoso Boris, um garoto de origem russo-ucraniana. Boris é quase uma Sônia, de “Crime e Castigo”, de calça? Quase é o termo. Porque Sônia, religiosa, não tem uma visão cínica do mundo, ao contrário de Boris. Agora, sem tirar nem pôr, Theo é um “filho” de Dickens plantado por Donna Tartt na América. É uma história policial? Também. Na prática, uma história literária refinada. A relativamente reclusa Donna Tartt é autora de mais dois romances de alta qualidade.