A sátira que desisti de escrever

A sátira que desisti de escrever

Tenho a impressão, a triste impressão de que a mistura do politicamente correto com o analfabetismo funcional acabou por assassinar a possibilidade da sátira no Brasil de nossos dias. A sátira, que existe desde os antigos gregos, é uma técnica literária, em prosa ou verso, que tem por finalidade ridicularizar um tema para chamar a atenção sobre ele. Para conseguir tal objetivo o autor recorre às entrelinhas, ao humor, ao escracho, à ironia, ao nonsense, ao sarcasmo, à corrosão, ao contrario sensu, à caricatura, enfim. Para tanto se vale da redução ou ampliação de uma coisa ou de uma ideia até torná-la ridícula, colocação em pés de igualdade coisas de tamanhos ou valores desiguais.

Para a sátira ser bem sucedida, tem de haver receptores minimamente capacitados, que possam ler nas entrelinhas, entender as conotações, o contrario sensu, e que tenha senso de humor. Fora dessas condições o que vai haver é um tremendo ruído.

Gregório de Matos Guerra, o Boca do Inferno, é o nosso maior escritor satírico, viveu na Bahia entre 1636 e 1696 e costumava satirizar as práticas e os costumes corruptos da época. Jonathan Swift, escritor irlandês do século 18, autor de “As Viagens de Gulliver”, é um dos escritores satíricos mais conhecidos globalmente. Em 1729, para chamar a atenção da sociedade sobre a vida de penúria da população mais pobre do Reino Unido (era o início da Revolução Industrial), Swift escreveu a famosa sátira “Uma Modesta Proposta”, em que propõe que os filhos dos miseráveis sejam usados como petiscos e a pele deles, por ser muito tenra, seria curtida e usada na confecção de luvas para as madames usarem durante o inverno.

No Brasil de hoje em dia, tenho certeza, uma crônica assim iria despertar uma fúria medonha e pouco entendimento. Outro dia, aproveitando uma fala do ministro japonês em que afirmava que a recuperação das finanças de seu País estava condicionada à morte antecipada dos idosos, publiquei uma sátira, num outro veículo, chamando a atenção para o desprezo que é devotado aos velhos (dentre os quais me incluo) no seio das famílias. Fui, com raras exceções, incompreendido. Teve até um doutor em ciências sociais que, na condição de assinante do veículo, exigiu a minha demissão. Agora recente, publiquei aqui na Bula outra sátira sobre a criminalidade no Brasil e usei como mote a ideia de liberação das drogas preconizadas por FHC. Foi como passar por dentro de uma guerra de intifada: levei pedrada de todos os lados.

É claro que restam alguns leitores que ainda são capazes de ler e compreender um sátira. Mas realmente é raro. Como eu escrevi no início, parece que o predomínio do politicamente correto associado ao analfabetismo funcional (essa jabuticaba do ensino brasileiro) acabou por suprimir a habilidade de fazer leituras nas entrelinhas. Hoje o texto precisa oferecer uma possibilidade de leitura literal, assim como os manuais de instalação ou de autoajuda.

Mas com o título sugere, eu tinha pensado em escrever uma sátira para chamar a atenção para os problemas do nosso Esporte Olímpico. O Governo diz que quer transformar o País numa potência olímpica, ficar entre os dez mais, no entanto, os atletas não conseguem aumentar o rendimento por falta de apoio adequado. Quer seja privado, quer seja estatal.

Por outro lado, por injunções que não cabe aqui desvendar, nossos atletas paraolímpicos (que virou paralímpicos, palavra que deve ter sido inventada por um analfabeto funcional ou leso da ideias) vem tendo um desempenho formidável nos últimos certames. Daí eu tinha pensado numa sátira no sentido de sugerir que a gente afiasse o foco. Que a gente desistisse das olimpíadas e ficasse só nas paraolimpíadas. Talvez fosse esta de fato a nossa vocação.

Para que a gente estourasse a boca do balão nas paraolimpíadas, minha sátira iria sugerir a providência radical e absurda de O Estado Brasileiro promover uma mutilação geral dos atletas olímpicos. Cortar as penas dos corredores, os braços dos nadadores. Quebrar a espinha dos jogadores de basquete, furar os olhos dos praticantes de tiro ao alvo e assim por diante. Readaptar nossos atletas às novas condições físicas e inscrever todos na paraolimpíada. Aí sim, vocês iam ver que não tinha pra ninguém.

Mas depois de tantas mensagens malcriadas, até com intimidações e ameaças de agressões físicas, desisti de escrever sátiras e para não perder o emprego, talvez eu volte escrevendo mensagens de autoajuda, to tipo Jesus te ama, não desista de seus sonhos, e por aí afora.