As flagrantes fragrâncias de Florence

As flagrantes fragrâncias de Florence

O que mais agradava a Davi eram os cheiros da Florence. Uma fragrância diferente para cada dia da semana. Adolescentes estudavam na mesma escola. Davi sentia um prazer inconteste quando ela entrava na sala um pouquinho antes da sete horas da manhã, trancinhas no cabelo, abraçada a uma pilha de livros e cadernos que a mãe vivia advertindo qualquer dia acabariam detonando a sua coluna.

Ele tinha treze. Ela tinha treze. Há seis meses engataram um primeiro namoro que parecia ser o último para ambos, de tão grande e puro o que sentiam. Davi andava meio ressabiado com a namorada porque nos últimos dias ela parara de usar perfumes. Podia parecer um detalhe irrelevante, mas, não para ele, fã dos odores intermitentes da moça, que até então se esmerava na escalação de uma fragrância para segunda-feira, outra para terça-feira, e assim por diante.

Certo dia, ao chegarem à escola, Davi e todo mundo depararam-se com os portões cerrados, a desbotada esfarrapada bandeira brasileira a meio pau, e um cartaz enorme no qual ia escrito o seguinte: “Informamos que as aulas estão temporariamente suspensas em luto pelo falecimento da estudante Florence do 9ª ano B. Reabriremos normalmente na segunda-feira”. Como assim, “normalmente”?! A flâmula nacional estava arregaçada!

Davi ainda não sabia, mas, no dia anterior, a namorada atirara-se do apartamento em que morava com a família, no 12º andar do Edifício Comentar. Peculiaridade intrigante: caiu sobre canteiro florido do condomínio. O mancebo sentiu uma vertigem tão profunda que vomitou na calçada e precisou ser amparado pelos solidários companheiros de drama.

Se existe uma coisa que ninguém suporta nessa vida — ao ponto de se ficar exigindo explicações divinas, médicas e mediúnicas — é a morte de uma criança ou de um adolescente. Não foi diferente com o pulo de Florence. Quando Davi adentrou no funeral, levado pelos pais, sentiu um bafo adocicado e forte de rosas que por muito pouco não o fez vomitar novamente.

De todos os odores já sentidos, aquele era o mais execrável. A saleta estava lotada de gente, chiliques, desmaios e coroas de flores, carregando o ar com um desespero desconfortável e um olor tão desagradável que realmente revirava o estômago da gente. Eu era aquele que, atrás da multidão sentida, jamais chorava, mas a todos os movimentos observava a fim de escrever um texto.

Tinham lacrado as dobradiças. Florence mantinha o rosto bonito e calmo detrás daquela janelinha de vidro do ataúde, e parecia apenas dormir como fizera umas tantas vezes no colo de Davi durante o recreio. Supõe-se que para dar cabo da própria vida, há que se ter um motivo condizente, uma justificativa plausível, uma explicação lógica aos estupefatos sobreviventes, pobres diabos ignorantes nas engrenagens da vida e da morte.

Uma carta foi encontrada (quase sempre se encontra alguma) e nada além de um “amo todos vocês, fiquem com Deus” foi o que se leu nela. De tal sorte que as teses por ali pipocavam aos borbotões, mas ninguém podia abalizar o que impelira Florence a saltar no vazio da tarde, não nos braços do primeiro namorado, mas no colo da morte.

Do que Florence queria se ver livre? O que, verdadeiramente, a incomodava? Por que viver parecia tão terrível se, há menos de duas semanas ela revezava um sem número de fragrâncias no pescoço, aqueles cheiros misteriosos que Davi adorava farejar nas primeiras horas do dia? Por acaso, não seria a vaidade um sintoma de pura vitalidade?

Davi e todo mundo tinham que ir comendo aquele memorável banquete de dúvidas atrozes pelas beiradas, juntando os cacos, fazendo retrospectos, garimpando nexos, tentando montar um quebra-cabeças que de tão inacreditável transformara-se num mosaico aberrante e sem sentido que a todos desacorçoava.

Jovens costumam ter pensamentos mais ou menos puritanos e primam muito pela ingenuidade, uma característica pitoresca que tantas vezes irrita aos adultos. De tal sorte que Davi dizia aos quatro cantos que nunca mais na vida amaria uma namorada como amara Florence. Lamentável ouvir aquilo da boca de um menino de treze anos. É foda: eu quase ri, para não chorar.

Lembro-me perfeitamente de testemunhar o seu falatório descontrolado, inconsolável, à sombra de uma mongubeira, enquanto o experimentado pedreiro e seus comparsas de argamassa apressavam-se em erguer logo aquela meia parede de tijolos, que era pra separar os vivos dos mortos, e fazer aquela multidão vazasse fora dali. “Simbora, povo, que têm mais gente na fila a ser enterrada antes da boquinha da noite…”.

Então é isso. Acostuma-se com um tudo nessa vida: sorrir, matar, mentir, lesar, enterrar gentes. Por exemplo: quando Raimundinho entrou para a Funerária Vai com Deus imaginou que aquele tipo de serviço — dar um asseio, uma guariba, um trato derradeiro em defuntos — sinceramente, não era para ele. Quase se precipitava e abria mão dos mil e quinhentos dinheiros de salário. Uma loucura, imaginem.

Nada como um dia após o outro e algumas tragédias de entremeio. Não se passaram nem seis meses e Raimundinho já se sentia bem melhor naquele ofício, o bam-bam-bam dos papa-defuntos, ao ponto de almoçar por ali mesmo, escorado nas pilastras, misturado aos convivas mortos, e comer uma quentinha cujo aroma do baião-de-dois invadia suas narinas veteranas mesclado com sangue, formol e tripas.

Hoje em dia, ele sente praticamente nenhum asco ou repulsa ao zelar da clientela. É como se escovasse os dentes. Mas que ele baqueou ao lidar com o corpo de Florence, baqueou; não conseguia disfarçar dos colegas. A única coisa que restou fazer numa situação como aquela era o seu tradicional Um Minuto de Silêncio, engessado em pé, feito estátua, ao lado da vítima. Rezar ele não rezava. Aquele cheiro de formol e drama já tinha deteriorado toda a fé raquítica que ele um dia teve. Daí então, calçava as luvas de borracha e punha logo as mãos na massa, cuidando de uma tarefa fundamental que poucos se disporiam a fazer.

Florence morreu. Davi sente-se só. As aulas recomeçaram na segunda-feira. Algum filho de Deus encomendou uma nova bandeira para a escola. Finalizei o meu texto. E mais um grande mistério ainda teima em nos matar de curiosidade: o que leva um ser humano tão jovem a desistir da vida? Olha, é triste demais imaginar colherem Florence daquele canteiro de begônias.