Até um prato de comida quer sair bem na foto

Até um prato de comida quer sair bem na foto

Nem o Instagram, aplicativo cult, disponível para celulares de sistema IOS ou Android, fica fora dessa. Porque, vamos combinar, um bife a cavalo, com dois portentosos ovos estrelados por cima, (com a gema ainda mole, para ser atacada por nacos de pão) parece ainda mais saboroso se conseguir despertar — pela visualidade — a gula de todos os explícitos e anônimos voyeurs de redes sociais sempre dispostas a acolher a voracidade dos seus dentes nos olhos. Fome de imagens.

Iconofagia, como denominaria o pesquisador Norval Baitello Jr — autor de interessante livro —“O Pensamento Sentado: Sobre Glúteos, Cadeiras e Imagens”. Devoramos imagens e somos devorados por elas. Numa reedição macabra do mito de narciso. Engolimos miragens também. Encaixados em múltiplos avatares — ou surreais mosaicos de avatares, em sinergia com personas virtuais alheias.

Hoje a coisa piorou. Não somos apenas apaixonados por nós mesmos, como ratificaria o pensador Lipovetsky, em um de seus livros “A Era do Vazio”, segundo o qual existimos em uma época circundada pelo hipernarcisismo — e a decorrente egolatria.

Nossas interfaces primevas são nossos espelhos. O paroxismo do antropocentrismo. A partir daí, uma série de interfaces, plataformas midiáticas e ferramentas neotecnológicas, erguem uma fina e às vezes invisível barreira entre nós e os instáveis fluxos do cotidiano.

Assistir a um show, por exemplo, via filmadora digital, é muito mais emocionante, sem dúvida, que apreciá-lo a olhos nus. Assim como fotografar cada segundo de nossa idealizada existência, em estágio de absoluta liquefação, como sentenciaria Bauman, sociólogo polonês. A modernidade é líquida. Como o são os seres humanos que nela habitam.

Neste particular, a propósito, eu iria mais longe. Afirmaria, sem receios, que o homem da atualidade é inextricavelmente gasoso. Alguém que propala sua calamitosa ubiquidade. As ondas wébicas, por sinal, lhe facultam um movimento gerundivo de aterrissar em vários lugares ao mesmo tempo. “Here, There and Everywhere”. Pretensão pouca é bobagem.

Do mesmo modo como não podemos perder nada, nenhum ínfimo episódio desta vida — que se passa feito filme sequenciado por câmeras aceleradas — tudo, literalmente, necessita de registro para que ocupe seu lugar nas diáfanas nuvens da eternidade.

Beijos, sorrisos, caretas, parto, jantares, viagens, baladas enlouquecidas, raves alucinantes, pôsteres de autoajuda. Qualquer cena, portanto, que ateste nossa pulsante fisiologia e constituição como terráqueos, garantirá sua exibição em redes afeitas a signos, ícones reveladores de absoluta e rotineira transparência.

Tudo tem que ser às claras. Menos, talvez, nossos pensamentos e instintos. As palavras, a oralidade, o poder retórico estão com os dias contados.

No século passado, o filósofo Foucault elencava o reinado da voz, o falo da fala, por meio da qual se culpabilizava ou redimia um réu por atos velados, apontados como escusos.

Nos tempos atuais, a impressão que se tem é a de que encontramo-nos envoltos por véus, membranas uterinas ou preservativos-sociais-digitais. O que importa de fato é a íntima e interessantíssima relação particular estabelecida com devices ou gadgets.

A carnalidade, palpabilidade corpórea assume sem reservas os adjetivos: lerda, pesada, previsível e porque não — indefectivelmente brega, alardearão de imediato adeptos do transhumanismo. Que delícia nos mesclarmos a extensões tentaculares nos assediando inconteste, como discorreria Mc Luhan. Somos polvos, cefalópodes, esclarecerão biólogos.

Reverberamos e ocupamos espaços-extra neste mundo por intermédio de aparelhinhos digitais aos quais nos agregamos. E simultaneamente das múltiplas telas que nos assolam, como em um embriagante “continuum” estroboscópico. Janelas de formatos e dimensões distintas. Inclusive diminutas, presentes e acessadas em inúmeras ocasiões.

“Janela da Alma” — título, aliás, de belo documentário que expressa — dentre outras temáticas — a frase de Leonardo da Vinci: “olho é a janela da alma”. Curioso é que, retomando nossas anteriores ilações e recorrendo a metáforas, precisamos diuturnamente comparecer a cartórios sociais, para selar com carimbos aquiescentes — firmas reconhecidas da nossa frágil existência no universo.

Em uma de suas seminais obras, “A Religião das Máquinas”, o pesquisador Erick Felinto passeia pelas ressonâncias das novas tecnologias, o fascínio exercido sobre incontáveis fantasias de desmaterialização, próprias do imaginário dos indivíduos.

Transcender limites. Derrubar entraves. Criar asas, ainda que protéticas. Mas enquanto este delírio não se concretiza, ocupamo-nos em arrancar Guy Debord do seu sepulcral leito de morte.

Reacendemos várias das premissas de “A Sociedade do Espetáculo” pautadas na narcose da autoidolatria — plateias aplaudam-me, também perpetrada pela aura dos ídolos olimpianos analisados por Edgar Morin.

Ou então atrelamo-nos à sequiosidade gerada pelos 15 minutos de fama, já preconizados nos anos 50 pelo iconoclástico Andy Warhol. Todas as pessoas estão se achando, como ressalta a gíria. O sol inquestionavelmente nasceu para todos.

Não apenas para mim — que também me acho — como para tudo que me rodeia, meus filhos, animais domésticos, roupas, músicas, webcams e miríades de fotos, produzidas à exaustão, atestando que toda minha vida cabe perfeitamente num especialíssimo álbum virtual.

Um álbum com lugar de honra, reservado para um cardápio recheado de gastronômicas tentações — como o rústico, porém honesto e suculento, bife a cavalo.