As histórias de cada um de nós passeiam pela vida afora

As histórias de cada um de nós passeiam pela vida afora

Logo no início da sessão ela teve vontade de falar do mar, da selvagem vitalidade que encontrava ao se entregar inteira às espumas. Vontade de esmiuçar as danças sinuosas nascidas das ondas, agitadas como serpentes, os polvos imensos, regentes das profundezas melódicas com seus tentáculos de maestros das águas.

Ela quis comentar dos mares antigos, desbravados por navegadores desejosos por lamber novas terras recendendo à coragem e à sabedoria de conchas ancestrais. Ela sonhava em beber do sal afrodisíaco entranhado em ostras avantajadas. Algumas delas plebeias, porque desperolizadas.

Ele, por sua vez, quando as luzes se apagaram, pensou em abordar “o percurso dos pés no caminho dos séculos”. Ainda não havia escrito qualquer ensaio sobre o tema. Mas se rendia encantado, quase de joelhos, a admirar a humilde intuição, estruturada em longas jornadas de pés anônimos peregrinando pelas crostas do mundo.

Desejava comentar sobre pés descalços que conversam com o solo, fiéis aos roteiros de supostas virtudes alardeadas pelo futuro — este já irrevogavelmente esgarçado. Àqueles pés revoltados com o movimento propulsor da existência, teimando em permanecer estáticos sobre a natureza.

Pés colados ao chão. Imiscuídos em folhas secas. Talvez se expressando no dialeto sensório estabelecido junto às larvas, minhocas e raízes, algumas podres, é verdade, mas embebidas de histórias subterrâneas. Estes pés não quiseram ir adiante.

Alguém um pouco atrás imaginou discorrer sobre sinos de igrejas medievais.  Os pecados de toda a humanidade gemendo através dos séculos e das horas. As fervorosas carolas habitualmente de negro e açoitadas por ânsias vermelhas, entranhadas nas solitárias e úmidas vaginas.

Falar dos padres que jamais se banhavam, das vestes cheirando a mofo e peixe, dos pensamentos transversos recolhidos junto ao altar, vestido de linho impecavelmente branco.

Ele ainda especulava sobre a intimidade dos confessionários, Taras e perversões reveladas na penumbra por bocas trêmulas e vorazes. Penitências distribuídas entre os religiosos destituídos de suas batinas e de sua fé. A hipocrisia ungida por óleos beatíficos.

Outra mulher sentada nas últimas fileiras gostaria de discorrer sobre pedras. Tão duras em sua calva e derradeira existência. Pedras que jamais conheceram o alívio das quedas de uma cachoeira, o alento de chuvas ocasionais. Pedras banidas de fotografias. Cuspidas longe pela fúria dos desertos. Abrigo eventual de salamandras, lagartos enormes. Estas eram as pedras que interessavam à mulher.

Um adolescente pensou na beleza e também nas agruras do inverno. Nas árvores nuas açoitadas pelo frio, nos pássaros recolhidos ao próprio abandono, pousados em galhos inúteis. Aventou sobre os peixes congelados em rios distantes, que sequer chegariam a alimentar os ursos das regiões árticas. Preocupou-se quando deduziu que os ursos buscariam devorar humanos para aplacar sua fome e que ninguém jamais teria ciência do horrível fato.

Lembrou do boneco de neve que esculpira quando criança, tão bonachão quanto provisório em sua frágil forma. Nas renas que jamais veria. Na Lapônia, terra do Papai Noel de quem tivera conhecimento apenas por intermédio de livros de história perdidos na infância.

Uma mocinha que adorava geografia especulou sozinha sobre o mistério dos vulcões no universo.  Sentada, ali mesmo aonde estava, traçou um mapa mental e sonhou em viajar para a Islândia — país com 130 montanhas vulcânicas e cerca de 20 vulcões ativos. Ela, para ser muito sincera, gostaria mesmo de morar lá, extasiar-se com o espetáculo da aurora boreal, imiscuída na população, 99.99% alfabetizada e, claro, educadíssima.  Quem sabe um dia.

Um senhor, bem vestido e de cavanhaque, com ar filosofal, encontrava-se perto da mocinha. Lembrava das areias coloridas que conhecera em suas andanças pelo planeta, no poderio do vento que as desloca para territórios sem limites. Indagou sobre a areia aterrissada nas profundezas dos oceanos, servindo de céu a belíssimas estrelas do mar cercadas de corais prodigiosos.

Recordou da imponente ampulheta, decorada em madeira maciça, que ornamentava seu escritório de arquitetura. Dos castelos de areia, tantos que erguia quando era bem pequenino e sorria, sempre pronto a entregá-los às ondas que os engoliam sem pudor. Talvez por isso ele crescera desprendido, convivendo com a impermanência, com a fluidez dos instantes, as indecifráveis linguagens do tempo.

Imaginava que talvez morresse em poucos anos. A não ser que conseguisse curar-se de uma cirrose que lhe empedrava o fígado. Farras, noitadas, paixões e bebidas. Mas não se arrependia de nada. Aliás se percebia hoje uma pessoa melhor. Mais afinada com os sustos da atualidade. E até mais feliz.

O filme terminou. Era francês.  Uma história belíssima que todos levaram consigo ao acender das luzes, acrescentando-a a novos pensamentos, ilações, conversas e memórias.  Nenhum dos personagens dentre os mencionados acima se conhecia.

Mas todos saíram do cinema com um leve sorriso no rosto. A plateia desfez-se aos poucos. Alguns ainda deslizaram os olhos sobre os letreiros, despedindo-se de mais uma fascinante viagem.

Ilustração: pintura de Joaquín Sorolla y Bastida