Por mim, linchamos o miserável e depois vamos à missa

Por mim, linchamos o miserável e depois vamos à missa

“O moleque ter sobrevivido foi obra de Deus”, disse o vendedor de loterias, que era crente feito o cão (se me permitem o chiste herético). Era uma daquelas tardes modorrentas na louca cidade, quando um caminhão desgovernado bateu num caminhão do Governo que bateu numa moto que conduzia um casal que morreu esmagadim na hora sem saber de quê nem pra quê.

Não vou aumentar a estória, nem fazer piada com a dor alheia, mas contarei o fato a minha maneira: isto aqui é uma crônica baseada em fatos reais que mais parecem inventados. A tragédia aconteceu quase desse jeito, de tal forma que não vou economizar palavras só pra preservar o seu apetite, salvar o seu dia. Vai ler o resumo das novelas ou as extensas bulas dos seus psicotrópicos, ora!

O primeiro motorista dirigia chapado com rebites de anfetamina, então, com quarenta graus dentro da cabine, mais quarenta e oito horas sem pregar os olhos porque tinha que entregar uma carga de cágados de porcelana chinesa na puta-que-o-pariu dentro do prazo estipulado pela transportadora, acabou tendo uma alucinação colossal. O caminhoneiro errou os pedais, então, acelerou, ao invés de frear, para colidir num coirmão das estradas da vida, o qual, por sua vez, perdeu o controle da gigantesca traquitana sobre dez rodas e atropelou uma motocicleta com gente e tudo.

Pode até parecer deboche, melodrama, mas, não: a mulher grávida de nove meses seguia com o marido numa motoca para a derradeira consulta do pré-natal feito com um médico cubano emprestado por Havana para o acudimento de brasileiros desassistidos numa precária unidade de saúde da periferia, onde não só faltavam gaze, esparadrapo e penicilina, mas, higiene, atitude e auto-estima: estavam todos resignados com a indolência do Governo e com os desígnios de Deus.

Com os inúmeros pesos e percalços dessa vida não há quem não vergue, nem que seja um bocadinho. Pois a trombada de gigantes de aço foi tão estúpida, que o feto distraído foi expelido à força do arcabouço uterino, com toda a bruteza que se espera de um caminhão desgovernado e de um escritor com uma pena na mão. Para o seu governo e piedade, o filhote foi cuspido com placenta e tudo, como se fosse o caroço de um abacate maduro, se sobre ele desferíssemos uma porrada: plaft!

O espetáculo dantesco foi tão inusitado que o tal vendedor de loterias não conteve as lágrimas e os pensamentos: “Que casal azarado, gente!”, lamentou como se jogasse no bicho. Mesmo sem o treinamento adequado, ele mesmo ultimou as providências daquele parto ultra-rápido e absurdo sobre a quentura do asfalto que ficou besuntado por um pântano lodoso, um misto de sangue, poeira e óleo diesel.

De puro pavor, os caminhoneiros cascaram fora. Por pura falta de opção, o baby vazou pela fenestra artificial aberta no ventre materno como se fosse o estouro de um pneu mal recapeado, impedido, portanto, de gozar a tão estressante jornada peculiar aos bebês que deslizam vagarosos, comprimidos, através do vão lubrificado de um canal de parto. Mesmo assim, mesmo com tamanha intromissão humana na ordem fisiológica das coisas, o caroço — ou melhor, o concepto — sobreviveu àquela vitamina indigesta. “Escoriações leves numa tarde com cenas tão pesadas”, floreou o médico do SAMU.

Durou quase nada, um bando de gente aglomerou-se ao redor do calvário urbano para apreciar o quéti-chupe no asfalto, o labor adjutório dos bombeiros, e a faxina silenciosa dos homens do IML, acostumados que eram às desgraceiras da vida e às diuturnas amputações afetivas.

Essa onda no Brasil de se fazer justiça com as próprias mãos não está para brincadeira, não. Apesar da comoção generalizada pelo parto surreal no asfalto, alguém no meio da turba se deu conta que, antes que a polícia chegasse e esticasse aquela fitinha amarela com os dizeres “cai fora, gracinha”, um gaiato aproximou-se dos corpos combalidos, revirou os bolsos, colheu pertences de uma bolsa, misturou-se à multidão e tentou escapulir.

“Foi aquele cara ali com a camisa do Tessalonicenses”, alguém berrou, ao que todos desandaram a perseguir um adolescente negro, raquítico, desnutrido, que vestia a camisa do time do coração, se é que ainda possuía algum, tamanho o rol de sofrimentos pelos quais já passara na vida. Os próprios captores trataram de aplicar no moleque, erroneamente, um corretivo, um bacolejo extraoficial em busca do inócuo tesouro do casal esfacelado.

Só sei que — sol a pino — o pirralho já estava subjugado, julgado e condenado pela galera, uma vez que uma mulher branca, intolerante, de aparência limpa, invulgar e decente, cujas tranças pentecostais desciam até a forquilha das nádegas rechonchudas, garantia, jurava com a mão espalmada sobre qualquer livro sagrado que fosse, que era ele, sim, o negrinho safado que fuçara nos farrapos humanos a subtrair os seus pertences.

Da calçada, um grupo de lojistas do comércio local palestrava a respeito do acidente horrendo e da balbúrdia criada pela captura do impensável meliante. Um deles, que parecia o mais ponderado, disse que deveriam esperar pela chegada da polícia para entregarem o guri na mão de quem realmente entendia de extermínio, ou melhor, de Segurança Pública.

Outro comerciante contradisse o primeiro, desdenhou da sua opinião ao dizer que deveriam deixar o moleque cair fora, pois se tratava de um menor de idade, criatura inimputável à altura que muitos esperavam, e que a polícia não somente gastaria tempo, mas, gasolina ao se meter com aquele tipo de marginal. Que fossem prender os marmanjos mais tarimbados, criminosos pós-graduados que deitavam e rolavam ali nas redondezas.

Um terceiro senhor, que pediu para não ser identificado nesta crônica, teve pena do suposto larápio, então, comentou que o celerado mirim não passava de um pobre coitado, mais uma vítima do status quo, um devotado soldado do crack, um adolescente pé-rapado e de pele escura, abandonado pela sociedade, pelo Estado e até pelo capeta.

O quarto empresário garantiu que, em se tratando de demônio, ele era catedrático, pois, nas horas vagas, quando não estava a vender tijolos, tintas e vergalhões na sua loja, espantava o ócio pregando Cristo na cruz, ou melhor, pregando as palavras de Cristo numa igrejinha à meia luz, na favela do Caixote Quebrado. Já que não tinha comida no estômago, a solução para o pivete era aceitar Jesus no coração.

O quinto homem, que parecia o mais velho, portanto, o mais sábio da turma — as aparências e os homens casados enganam — reclamou que o comércio da região vinha amargando prejuízos diários por conta da onda de furtos, arrastões e ataques, portanto, nada mais justo que cuidassem eles próprios daquela situação: “por mim, linchamos o miserável e depois vamos à missa”.

Foi ele terminar aquelas palavras, um alvoroço brotou da multidão: começava a pancadaria, terminava o meu texto.