Cada escritor tem os leitores que merece

Cada escritor tem os leitores que merece

Envelhecer é uma merda, sim, eu sei, é verdade. Mas, com o passar dos anos e algum grau de esforço observatório (tá bom: pensar cansa muito, é difícil, vá lá…), é possível chegar a algumas conclusões quanto à vida, às pessoas, especialmente à conjuntura amalucada do habitat em que se (sobre)vive.

Com a velheira em andamento, eu descobri por exemplo que a maioria das gentes gosta dos feriados; de acordar tarde; do bife bem passado; do ovo com a gema mole; de apalpar nádegas durinhas; do coito sem camisinha; de chupar balinha; de reclamar do governo; de reclamar da sogra; de reclamar de qualquer coisa, seja ela sólida, líquida ou gasosa; de gastar dinheiro; de encontrar pessoas conhecidas nas filas e — consequentemente — furá-las (furar as filas, fique claro); do sexo antes do casamento; de cochilar após a comida; dos empates com gols; de empatar o namoro da irmã caçula; de ler só os livros abaixo de cem páginas, com letras enormes, e repletos de ilustrações; de fazer fofoca; de tomar café após as refeições; de mandar o árbitro ir tomar no cu; de apostar em loterias; de sonhar alto; de carícias no baixo ventre; de ser sempre o primeiro; de amaldiçoar as segundas; de debitar a própria culpa a terceiros; de torrar o décimo terceiro salário com bobagens; de mastigar a hóstia consagrada; de comer carne de porco no sábado de aleluia.

Após uma longa temporada claudicando pelo terreno pantanoso da poesia, num período da vida em que eu era muito jovem, inquieto, ainda colecionava cabelos e sonhos na cabeça com uma convicção de fazer inveja a qualquer mentecapto delirante, acabei perdendo um bocado do visgo pela lira e pelas pessoas, aportando então na prosa (terreno perfeito para escrachar com a hipocrisia humana) para me arriscar na sempre solitária — e quase sempre incompreendida — construção de contos, crônicas e outras anotações inclassificáveis (um dia um sujeito me disse “com toda sinceridade” que eu era um desclassificado). “Mas, escrever pra quê?”. Melhor perguntar para quem, uma vez que a manada de interessados em literatura parece diminuir vertiginosamente a cada dia, no contra-fluxo dos avanços tecnológicos propiciados pela modernidade e que nos impelem para a pressa, a respiração na rasura, a mediocridade, enfim.

É fato que, nos últimos anos, eu tenho escrito e postado textos com certa regularidade nos mais variados meios de comunicação, sejam eles virtuais ou no bom e velho papel-jornal. Então, mesmo sem pedir, mesmo pouco interessado nos feedbacks dos contatos conhecidos ou desconhecidos, eis que uma espécie de “0800 — Como Estou Escrevendo, Cambada” acabou se formando de maneira espontânea dentro do meu circo (é circo mesmo, seu palhaço!) vicioso de leitores.

Muitos palpites acerca do meu labor literário provêm de leitores para mim incógnitos que postam seus comentários simpáticos, elogiosos, mas também, reclamações, xingamentos, ameaças e até convites para encontros forçados, um confronto de ideias e muques, assim, no tête-à-tête. Jamais resisto a uma boa oportunidade para me esquivar, faltar a um duelo. Além do descompasso, carrego covardia no coração desde criança, quando selei compromisso de cuspe-na-mão com um troglodita do colégio para uma luta corporal até sangrar, no intervalo do recreio, no campo de futebol, mas acabei pulando o muro da escola, escafedi. O tapa mais forte que já dei noutrem, garanto, fez parte de uma desastrosa fantasia sexual que terminou com um cinzeiro de motel espatifando na minha cara, alguns pontos no supercílio, e outros tantos no meu currículo de amante careta.

Voltando ao que interessa, se é que alguém realmente se interessa: mamãe (a maior leitora que já tive nessa vida, depois da professora de Redação, que a tudo lia, mas, por pura contingência da profissão, obrigação, nada mais que isso) não gosta dos meus textos tristes e melancólicos. Aliás, tenho certeza que ela representa a esmagadora maioria dos leitores: as pessoas preferem se divertir, desanuviar, e eu não as condeno por pensarem assim. Besta sou eu que ainda tento engolir, digerir os iguais e seus horrores.

Meus atuais editores aprovam tudo o que escrevo, muitas vezes, censurando só os palavrões (são pessoas decentes, logo se vê), uma atitude que considero politicamente educada, higiênica, embora, funesta. Graças ao uso de palavrões não tenho pressão alta ou gastrite. Meus editores, portanto, têm sido mais amigáveis que o meu próprio cão, além da vantagem de não possuírem pulgas, não fazerem sexo na minha frente, nem urinarem no tapete da sala.

Chocada com o teor cruento e desconectado de certos textos, uma cunhada menopausada, tradicionalista, enviou-me uma carta muito bem redigida (aliás, há anos eu não recebia cartas de pessoas físicas; só me chegam correspondências timbradas do fisco, dos bancos, das entidades pilantrópicas), com as letras redondinhas, caligrafia de mulher, vocês sabem, na qual sugeria que eu procurasse o mais rápido que pudesse, nesta ordem: um psiquiatra, um psicólogo e o padre Olavo, vigário tcheco-brasileiro especialista em endemoninhados, em exorcismo, na extração de bernes das costas e noutras assepsias do corpo e da alma.

Um concunhado piadista (desta vez, receio que o sujeito falasse mesmo a sério) plantou no seio familiar, no antro parental das fofocas malfadadas que, baseado na leitura minuciosa dos últimos textos, estava certo que eu me efeminara de forma definitiva e irreversível. “Nas entrelinhas, o sujeito escreve como um viadinho, vocês podem observar”, ele explicava, sem que ninguém na sala risse, afinal, ter viado na família é foda (foram as palavras do concunhado).

E mais: Carlos acha que eu sou sempre supimpa, então, me adula, me põe a perder. Tainá preside um tal fã clube (eu nem sabia que possuía algum) que já conta com várias curtidas na fanpage e uma dúzia de integrantes (sem contar ela própria, o marido, o bebê que cresce no seu útero e a mamãe). Euler é mais reservado, o mais comedido de todos, e nunca diz o que pensa de verdade, ele só pensa, e como pensa o sujeito!

Brasigóis, que tem nome estranho, não suporta mais ouvir falar sobre a maldade e a violência urbana, então, parou de ler as minhas crônicas e foi pescar. André não entende por que tanto pessimismo, crueza e amargura nos meus textos. Ele é meigo, suave, mas não me parece nem um pouco efeminado. Piolho lê apenas os próprios textos e os acha incríveis, melhores que os meus, que os de qualquer um. Graça acha tudo divertido, leve, e ri até do que não deveria ter graça. São mistérios da literatura.

Marcelo comenta que, como escritor, eu opero apêndices muito bem. Flávio é muito culto e só pensa em filosofia e cinema. Afrânio odeia-me sem reservas e já prepara um texto bombástico em réplica a tantas bobagens.

De uma coisa estou certo: estou aqui para escrever, tentar me safar, e não para fazer amigos.