Crescer faz mal à saúde dos sonhos

Crescer faz mal à saúde dos sonhos

Você se lembra quando foi que perdeu o visgo?

Você se lembra que pretendia mudar o mundo, mas, o máximo que conseguiu foi mudar de endereço e de analista?

Você se lembra que queria ser astronauta quando crescesse, e que agora, já crescido, a NASA não lhe proporcionou espaço algum, e flutuar pelo mundo da lua não só parece um ato insano, mas municia com a nitroglicerina das palavras as bocas maledicentes dos seus desafetos?

Você se lembra que tinha certeza absoluta que no final tudo daria certo, mas percebe que atualmente tem algo de muito errado na ordem do dia, quando um punhado de gente acredita que sempre haverá algum espaço para as coisas piorarem mais um pouquinho?

Você se lembra que caçava mosquitos-de-banana na sala de aula e escrevia um bocado de poesia nos rodapés dos cadernos, enquanto um catedrático em História explicava, com os requintes da verdade, detalhes impressionantes a respeito da crueldade humana nas duas grandes guerras mundiais?

Você se lembra que matava os primos com espingardas feitas com galhos de árvore nos quintais da sua infância?

Você se lembra que — estilingue pendurado no pescoço — enfileirava pardais mortos sobre a cerca do pomar, provando, sei lá pra quem, por a + b, que as crianças, quando querem, podem ser tão cruéis quantos os adultos?

Você, por outro lado, se lembra também que naquela época toda criança tinha salvo conduto para sonhar o quanto quisesse, ainda que o sonho fosse muito esdrúxulo, do tipo “voar que nem passarinho”?

Você se lembra que gostava de pescar traíras na lagoa, mas que hoje em dia é você que anda preso no sufocante emaranhado das redes sociais?

Você se lembra de enterrar a cabeça em fórmulas e cálculos matemáticos que jamais lhe ensinaram a lidar com pessoas frias e calculistas?

Você se lembra que tinha um puta medo do escuro, o mesmo escuro no qual hoje em dia você deita e rola com o seu amor ou com uma divertida prostituta?

Você se lembra do diretor fila-da-puta alertar a meninada, com aquele ar autoritário que é bem peculiar aos opressores, que havia um perigo incrível quando a puberdade despertava?

Você se lembra quando a Irmã Dolores — aquela que nem queria mesmo ser freira e que tomava rivotril até às grimpas — garantiu aos meninos que masturbação enlouquecia?

Você se lembra daquelas piadas acerca da Lei Gravitacional de Newton, da maçã, da jaca e da melancia?

Você se lembra o quanto tremeu nas bases ao saber quando um terrorista insinuou que gozar nas coxas das moças, ainda que perto dos joelhos e longe dos olhos dos adultos, também engravidaria?

Você se lembra que achava qualquer pessoa acima dos quarenta anos velha pra dedéu?

Você se lembra que tinha uma convicção infernal que existiria mesmo um Céu?

Você se lembra quando lhe explicaram o que era uma supernova?

Você se lembra que gostava mais dos peitos da colega Elizete do que todo aprendizado a respeito do fenômeno de formação dos corpos celestes?

Você se lembra dos amassos e das explosões estelares no banco de trás do Chevette?

Você se lembra quantas noites de sono você perdeu sonhando com o beijo de uma chacrete?

Você se lembra quando o seu velho o xingava de bosta e hoje é você quem põe sopa na sua boca e troca as fraldas geriátricas?

Você se lembra que muita gente achava ridículo quando você fechava os olhos, rebolava e fingia tocar uma guitarra imaginária, mas que hoje em dia são justamente os adultos que disputam as competições internacionais de air guitar?

Você se lembra como desafinava bonito no chuveiro e que hoje em dia você só faz gritar e espernear numa escala de fazer dó?

Você se lembra que o choque que você sentiu quando segurou na mão dela pela primeira vez foi bem maior do que aquele que você sentiu na semana passada ao receber uma intimação pra comparecer na Vara da Família?

Você se lembra que rimava amor com dor e mesmo assim se sentia um Carlos Drummond? E agora, José, que a inspiração acabou?

Você se lembra que as bonequinhas esguias com as quais você brincava na infância não tinham quaisquer pretensões financeiras, planos de saúde, nem silicones nos peitos?

Você se lembra que sonhava em ser atriz, modelo, jogador de futebol ou roqueiro até que o mundo finalmente estragou tudo ao lhe apresentar as garras do dinheiro?

Você se lembra exatamente em que ponto da sua vida você perdeu o visgo para se tornar parte de toda essa engrenagem social?

Ah, você não perdeu porcaria de visgo nenhum? Então já deve ter perdido a paciência com o meu texto desde o início. Dane-se! Eu não queria ser escritor mesmo.


Ilustração: pintura de Joaquín Sorolla y Bastida