Estupros coletivos, pesadelos particulares

Estupros coletivos, pesadelos particulares

Andira tinha 16 anos. O pai não sabia, mas, o fato é que Andira, há tempos, entregara o seu coração adolescente a um rapazote que morava num bairro perto da sua casa em Madyagram. O namoro era secreto, mas os estupros foram coletivos. Calma que eu já explico.

Ignorante como uma vaca, eu não sei se os indianos comemoram natais (receio até que Papai Noel faça menos sucesso por lá do que os próprios elefantes), mas, acontece que o pai de Andira — assim como o resto do mundo — não apenas ficou surpreso ao saber que a filha se afeiçoara por um marmanjo das redondezas, como quase ruiu ao receber das mãos de uma ilibada autoridade policial de Calcutá as cinzas da moça solenemente depositadas dentro de uma urna colorida enfeitada com miçangas, para que fizesse com ela o que bem entendesse, uma vez que a Inês — e Andira — já era morta.

Que guardasse aquele pó amorfo e sem verbo num local seguro ou o atirasse, se ainda restasse alguma fé, nas poluídas águas do Rio Ganges, uma vez que o bando de homens adultos que a estuprara já tivera banhado naquele caudaloso curso d’água, a fim expurgar vestígios de remorso (eu duvido muito disso) e fazer as pazes com o que existia de mais sagrado no imaginário coletivo. Para a mente criminosa — como vovó Geralda e Al Capone já diziam — não há sujeira que resista a uma boa lavagem.

Acostumado às desgraças reincidentes e à pobreza abissal em que sobrevivia com a família num bairro miserável de Madyagram, o pai de Andira sequer alterou o tom de voz ou marejou os olhos ao cobrar, com certa timidez, defronte os microfones das repórteres que choravam copiosamente (vocês sabem, mulheres choram por qualquer coisinha), que aguardava uma atitude mais contundente das autoridades policiais constituídas, pois, frente àquela crise, nem Jesus na causa. Definitivamente, na cabeça do povo hinduísta, aquele território não era da alçada do Rabi.

Raios não caem duas vezes no mesmo local? Desgraça pouca é bobagem? Qual nada. Ocorre que, há três meses, a moça sofreu dois estupros coletivos, um na ida e outro na volta de casa. Não dá pra ficar fazendo piada com o sofrimento alheio, eu sei, então, vamos logo ao assunto, degustemos juntos este fel: porque denunciara os brutos celerados à polícia, por pura retaliação e maldade, a jovem indiana foi queimada viva pelos supostos parentes da trupe de ordinários.

Eu sei que acabamos de adentrar o ano de 2014, e ainda há milhares de pessoas arrotando cidras cereser e gozando merecidas férias, e muitos ainda se ocupam em anotar numa embalagem de padaria as metas para o ano que se inicia. Não quero atrapalhar a digestão, muito menos, as férias de ninguém com as minhas reflexões acerca das reincidentes atrocidades humanas.

Mas acontece que a ruindade do homem não respeita os pipocos do champanhe. Na engenharia da maldade, não existe o botão de “Pause”. Uma tecla de “Delete” talvez fosse uma alternativa plausível para a assepsia planetária, a fim de Deus começar tudo de novo, do zero, como se nada tivesse acontecido. Não. Não vamos mais lucubrar a respeito de dilemas existencialistas. O tempo urge e o elefante brame.

Aproveitei o marasmo melancólico do feriadão de final de ano para assistir, pela enésima vez, ao DVD com o show em tributo a George Harrison, que ocorreu no Royal Albert Hall, Londres, em 2002. Com os olhos pregados na tela, entregue ao êxtase e a babar pelos cantos da boca como um mentecapto, eu apreciava a doce performance de Anoushka Shankar (filha do músico indiano Ravi Shankar) ao tocar o sitar.

Tive o meu transe musical interrompido por Júlia, minha filha adolescente que, por sinal, completará 16 anos de existência nos próximos dias. Júlia ficou muito impressionada com tudo o que encontrou ali naquela sala: a beleza de Anoushka (“vai ser linda assim lá na Índia”, ela disse), com a beleza do som do sitar e, especialmente, com a minha feiura apalermada de beatlemaníaco incorrigível. Mesmo assim, com tanta delicadeza a flutuar no ambiente (a não ser pelo meu semblante imbecilizado), as redes sociais venceram, convenceram e retiraram Júlia da sala.

Mesmo não sendo indiano, mesmo não sendo um sujeito zen, mesmo não sendo um ex-beatle, mesmo não crendo na existência dos OVNI, mesmo pondo fé no poder letal dos microrganismos, mesmo não temendo morrer de colapso ao chupar manga e tomar leite, mesmo desprovido de quase todo tipo de crendices, eu despertei daquele estado de catarse e sintonizei no noticiário da BBC, o qual relatava a morte da jovem indiana logo nos primeiros dias de 2014.

Então, engendrei numa reflexão amarga, ressentida, pouco alvissareira e nada mística a respeito dos violentos atos ocorridos naquele país. A despeito da raça, da posição geográfica no caótico mapa mundi, o que leva um homem a subjugar e estuprar uma mulher? Será que essa satisfação em humilhar e diminuir alguém sexualmente adviria de um suposto instinto animalesco para se manter a espécie, custe o que custar, doa em quem doer?

Dogmas religiosos e distúrbios mentais à parte (as descobertas da ciência, às vezes, fazem com que criminosos se safem do peso de um cajado), como é possível que, mesmo numa conjuntura de caos e terror, haja prazer, ereção e gozo? A maldade é tesuda?

De tanto pensar em estupros coletivos, me deu uma vontade particular de chorar, mas eu segurei firme a onda, homem que sou. Não são as mulheres que choram por qualquer coisa. É que há qualquer coisa de sujo nessa estória toda, que nem o banho de bucha da vovó no rio Ganges vai resolver. É dose pra elefante, gracinha.