Melhor isso do que nada

Melhor isso do que nada

Em setembro deste ano passei por uma experiência ao mesmo tempo desagradável e reveladora. Minha filha foi submetida a um procedimento cirúrgico para consertar um “defeito de fábrica” que provocava infecções urinárias de repetição. Desagradável não apenas por ver minha filha em situação fragilizada, mas por uma incômoda sensação de dejà vu. Há 40 anos tinha sido eu na mesma situação, no mesmo hospital — o Sírio Libanês.

O final da história, adianto, foi feliz, ela está ótima. Mas o meio é que me traz aqui. Nada como um médico ou alguém de sua família ficar doente para fazê-lo parar pra refletir. Ser internado num hospital como o Sírio é uma experiência única. Da entrada à alta hospitalar, a “máquina” funciona como um, digamos, na falta de analogia melhor, parque da Disney. O porteiro, a recepcionista, a funcionária da internação, a equipe de enfermagem, a equipe médica, a equipe de limpeza, as funcionárias da lanchonete, enfim, absolutamente todas as pessoas envolvidas, direta ou indiretamente, com o cuidado do paciente são extremamente atenciosas, bem-humoradas, eficientes.

Sim, a conta é salgada pra quem não tem os convênios que o Sírio aceita, mesmo o cirurgião não cobrando os honorários (uma cortesia entre colegas cada vez mais rara). E, sim, imagino que parte do motivo do bom humor e atenção de toda a equipe seja relacionada a uma remuneração satisfatória. Mas é claro que é mais complexo do que isso, e esse não é meu ponto aqui.

A experiência me foi reveladora por conta de uma triste coincidência. Na mesma época faleceu ali Luiz Gushiken. Lembrei-me, então, da preferência dos petistas pelo Sírio. E entendi por quê. Não que o Sírio seja o único bom hospital de São Paulo ou do Brasil. Há outros. Mas o que o Sírio e os outros têm em comum é o que atrai os petistas — o cuidado à saúde como deve ser. Profissionais ganhando bem, trabalhando num lugar bom, limpo, com estrutura física e de pessoal que dá toda cobertura necessária a cada membro da equipe.

Mas os mesmos petistas que não abrem mão do Sírio, consideram que os cidadãos de lugares ermos e das periferias das grandes cidades devem se contentar com equipes mal remuneradas ou sem direitos trabalhistas (ou as duas coisas juntas), em lugares sujos, sem a mínima estrutura. Por qual argumento? Melhor isso do que nada. Esses são lugares que já não têm médicos mesmo, e as doenças mais comuns não precisam de estrutura. Então, segue o argumento, melhor um médico sem diploma revalidado, num posto de saúde sem estrutura, do que nada.

À primeira vista, trata-se de um argumento aceitável, e a quantidade de pessoas que o engole sem mastigar é prova de sua eficácia. Mas não é preciso muito esforço para perceber que se trata do mesmo argumento de que os países ricos e a indústria farmacêutica se valem para justificar o chamado “duplo standard” em pesquisas em seres humanos. É o argumento do “anyway”. Por exemplo:  “podemos realizar pesquisas com anti-retrovirais (remédios para AIDS) em países africanos com subdosagens que jamais seriam aprovadas em nosso país porque eles (os africanos) já não têm o remédio ‘anyway’”. Eles que se deem por satisfeitos de ter acesso a algo no lugar de nada. Pouco importa se este “algo” é algo que nós mesmos não admitiríamos para nós mesmos.

Mas o duplo standard petista não se esgota na área da saúde. Com a prisão dos mensaleiros, apareceu também no sistema carcerário. Privilégios nas visitas, solicitação de trabalho acintosa (gerente de hotel com salário maravilhoso, pra uma pessoa que nunca ocupou cargo semelhante) e, claro, também aqui a área da saúde foi contemplada. Um prisioneiro que tem o que milhares de outros prisioneiros tem (doença cardiovascular), solicita tratamento especial.

O que me traz ao artigo de Maria Sylvia Carvalho Franco, publicado na “Folha de S. Paulo” de 8 de dezembro. De acordo com ela, as juntas médicas se curvaram aos “poderosos” (quem? Dilma? Lula? Esses são os dois mais poderosos na política nacional, no momento) em seus laudos, e ignoraram o que significa uma prisão. Para Franco, os prisioneiros Genuíno e (“talvez”) Jefferson não se assemelham aos “pacientes abstratos cujos diagnósticos pautam-se pelos parâmetros rotinizados oferecidos pela tecnologia médica”.  Ela tem razão. Genuíno e Jefferson se assemelham aos demais prisioneiros, e como tais devem ser tratados. E também tem razão quando diz que a bioética vem sendo debatida mundialmente. Especialmente o duplo standard.