O homem não tem poder sobre nada enquanto tem medo da morte

O homem não tem poder sobre nada enquanto tem medo da morte

As pessoas não sabem que perderam suas asas desde que colocaram os pés nesta terra. Elas perseguem o definitivo, o concreto, o seguro e o assentado, logo que aterrissaram neste planeta. As únicas mudanças aceitas, durante sua trôpega, minguada e inexpressiva existência, residem no meticuloso planejamento financeiro do seu cotidiano mesquinho.

Porque a vida só tem graça e sentido —  para quem a define por aquisições cumulativas domínios expandidos e decisões inquestionáveis —  se for cercada de possibilidades de enriquecimento contínuo, lascivo e abençoado por leis obscuras e pagãs.

Ninguém se dá conta, porém, de que quanto mais nos rendemos ao fascínio daquilo que consideramos como poder, mais nos afastamos da nossa tão sonhada e pouco tangenciada liberdade.

Inúmeros pensadores, filósofos e escritores ocuparam-se em estudar a aparente onipotência do poder, também frente ao contágio social. Marx, Nietzsche, Foucault são alguns dos que se debruçaram sobre o assunto.

Uma busca alucinada pelos simbolismos do termo, suas acepções à boca corrente e sinônimos mais banais atravessa gerações, curiosidades e demandas.

Ganhar muito dinheiro, submeter à servidão os mais próximos, os parentes, pseudo amigos em profusão, fascinados pelo gigantismo de uma palavra que parece a mais gulosa dentre as destacadas nos dicionários da política e das megalomanias.

Aliás, quem almeja vorazmente consumir doses cada vez mais expressivas de poder, como um maltrapilho viciado perambulando nas ruas da amargura, pretende na verdade acorrentar-se aos grilhões de suas próprias intenções.

Nas brincadeiras infantis, muitos de nós construíamos realidades de mentirinha, nas quais todo o domínio era nosso. Os teatros de marionetes manejavam abúlicos bonecos, movidos por um diretor feroz em apresentações dominicais na praça para saltitantes crianças.

Por outro lado, observando a publicidade, constatamos que ela confere um poder aurático, quase deificado, às suas marcas e serviços. Os detentores de determinado carro, grife de vestuário, as mulheres envoltas por inacessíveis perfumes franceses, relógios cravejados de pedras preciosas, sapatos de salto altíssimo absolutamente customizados e artesanais.

O poder tenciona se distinguir definitivamente das massas.  Ser singular, a qualquer preço, ter um caso alucinante com aquele diretor artístico, o gestor da empresa aonde você trabalha. Posar nua para famosa revista masculina é certeza de ascender às escadas do sucesso fácil. Dinheiro multiplicado, que venha de ações fraudulentas, não importa, porque a alma é pobre e esvaziada de caráter, carrosséis e fantasias.

Festas, holofotes, convites Vips para shows caríssimos e eventos de moda.  Isso é que faz a vida valer a pena para muita gente, inclusive os frequentadores das colunas sociais.

Degustar garrafas mágicas do mais caro champanhe francês do universo, cujo dourado líquido espumante é vertido generosamente pelo corpo dos amantes de ocasião, naquela ilha prive, instalada na costa verde brasileira.

Possuir iates, helicópteros, jatinhos com assinatura exclusiva, despontam como novas prisões de luxo e cordões umbilicais da vil matéria, da qual não se consegue nem se deseja desvencilhar jamais.

A filha mais velha que se aufere o direito de espancar os irmãos menores, dada a hierarquia cronológica. A mulher, garota de programa de alto nível, que se torna acessível à truculência cega de estranhos, mediante um cache bem polpudo.

Ter poder mesmo é chegar perto de silenciosos abismos sem temê-los. Descartar-se do fascínio de inúmeros cartões de crédito, do cabelereiro semanal, também frequentado por atrizes de nossa rede televisiva, para fazer uma simples e milionária escova em seus cacheados e cheirosos cabelos.

Abandonar preceitos, preconceitos, certezas irrefutáveis, lançar-se em tarefas quase impossíveis de olhos fechados e sorriso aberto. Deslindar-se das teias venenosas de aranhas capciosas e quase invisíveis, loucas por apossar-se de uma nova presa.

Deixar partir quem chega, sem perguntar o destino. Desapegar-se de tudo à volta: sonhos, tentações, idealizações e pessoas, pois somente assim conseguiremos compreender o nascer e o entardecer dos dias. Além das mensagens secas, lançadas por  noites sem estrelas e sem brisa.

Vaidade, orgulho, empáfia, ganância perfilam-se como habituais acompanhantes do poder caricato, que se compraz deste séquito.

O poder ainda nos remete ao falo. O pênis robusto cercado de veias, que se ergue duro e decidido a mais um espetacular e memorável gozo. Vale uma pergunta, neste momento. Serão os impotentes, também amantes do poder? Chefetes de quinta categoria, criaturas desamadas, lixo humano, indivíduos muito magros ou muito gordos estarão eventualmente aficionados pelos troféus do comando ostensivo?

Poder rima com felicidade? Esperança, metas, tranquilidade, aconchego? Reflita um pouco. No pequeno livro “laços”, o antipsiquiatra inglês Ronald Laing, estudioso das psicoses, começa o obra com um poema-título, decorrente de uma particular sessão de terapia.

“Eles estão jogando o jogo deles/Eles estão jogando de não jogar um jogo/ Se eu lhes mostrar que os vejo tal qual eles estão/quebrarei as regras do jogo e receberei sua punição/O que devo, pois, é jogar o jogo deles/ o jogo de não ver o jogo que eles jogam.”

Maquiavel, filósofo absolutista e autor de “O Príncipe” assevera que o monarca deverá se portar como um lobo em pele de carneiro. Segundo o pensador, em qualquer situação a mentira e a traição deveriam ser minimizadas porque os fins sempre justificam os meios.

Ao auscultar-se por instantes os bastidores da consciência, será o poder filho dileto do medo, da insegurança e de serializados sentimentos de inferioridade? De imediato, encontram-se ressonâncias com manifestações no autoritarismo de governos despóticos, sanguinários e devastadores, como o de Hitler.

Ânsia incontida de possuir as chaves do céu e do inferno. Busca pelo comando absoluto de tudo e todos. Da juventude infinita, da vida eterna. Porque a morte, afinal, para os ditames da ganância que atravessam os séculos, sempre esteve, claro, fora de cogitação.