Quando eu morrer toquem o Álbum Branco dos Beatles

Quando eu morrer toquem o Álbum Branco dos Beatles

Dioleno passou a vida inteirinha enchendo o saco de todo mundo com aquela estória de — por favor, gente — tocarmos só canções dos Beatles durante o seu funeral.

“Não se preocupe, vamos tocar “Satisfaction” até você virar dentro do caixão”, algum espírito de corpo dizia, só pra contrariar, só pra baixar o nível da discussão, uma vez que até mesmo fãs de música sertanejo-universitária com Ensino Fundamental incompleto sabiam que aquele sempre foi o principal sucesso dos “arquirrivais Stones”.

“Podem tocar o repertório inteiro se der tempo, mas, sem repetições, sem bis, e com muita organização. Respeitem o legado de Lennon, McCartney e George Harisson, cambada!”, ele advertia, transbordando devoção pela banda britânica.

Ninguém suportava mais aquele papo. Até que Dioleno morreu mesmo (tudo morre um dia, exceto a corrupção, a mentira e a vontade de ir pro Céu), aos sessenta e quatro anos (“When he was sixty-four”, alguém parodiou), com overdose de açúcar. O sujeito, além de beatlemaníaco, era diabético, e mergulhou num coma após consumir altas doses de mastruz com leite e mel, hábito alimentar que sustentava desde a infância, iniciado pelos pais que eram hippies, lascados e igualmente idólatras dos Garotos de Liverpool. Tomou gosto pela iguaria quando ouviu na vitrola, pela primeira vez, a canção “A taste of honey”, que nem da autoria de Lennon e McCartney era, mas aparecia no primeiro LP dos Beatles, de 1963.

Adepta ao naturismo, ao Flower Power, às pílulas anticoncepcionais, ao uso de maconha e de plantas medicinais, a mãe de Dioleno insistia em curar a bronquite do guri com aquela receita caseira, que só não curava câncer, unha-encravada e diabetes. Aliás, por causa do uso contumaz e prolongado, Dioleno adoeceu de tanto queimar insulina à toa.

Passado algum tempo, Dioleno mudou com os pais para a capital e os perdeu para o forró eletrônico e a axé music, então decidiu viver sozinho nesse mundo velho e sem porteira, inspirado na letra de “She’s leaving home”, do disco “Sgt. Pepper”. Sempre que um solitário morre, é preciso mexer, procurar, revirar as gavetas, fuçar nos pertences em busca de pistas úteis que levem ao melhor entendimento do perfil burocrático do falecido, afinal, por força da lei e da deterioração da matéria, é preciso enterrar o indivíduo o mais rápido possível.

O desconhecimento de um ser pelo outro é ainda mais aviltante nos dias de hoje, em que as pessoas não estão atentas ao que se diz, ao que se sente, fazendo com que muitas informações diárias relevantes se percam pelo caminho, na roda-viva das grandes cidades, na correria urbana desenfreada na qual o trabalho e a busca pela redenção financeira estão acima das relações humanas mais primárias como, por exemplo, tomar um pingado num copo americano sujo de batom, enquanto se observa a vida passar pelas calçadas.

Ultimamente, Dioleno morava sozinho num quarto de hotel vulgar no centro da cidade. Ao revirarmos o seu pequeno espólio, nos deparamos com a coleção completa dos Fab Four, além de um sem número de souvernirs da banda mais famosa da história do pop-rock.

Chamou nossa atenção um exemplar bem conservado do “Álbum Branco”, lançado em 1968, em cuja capa nem-tão-branca-assim Dioleno anotara o roteiro, o repertório póstumo de canções, com as suas respectivas resenhas justificadoras, a serem reproduzidas durante o seu funeral.

Quem se deparasse com aquela deselegante caligrafia de Dioleno na capa do LP poderia até jurar fosse ele um catedrático, um doutor, uma sumidade da medicina cubana no Brasil, ou uma autoridade da medicina brasileira em Havana. Tanto assim que alguém se lembrou de requisitar um conhecido que trabalhava como balconista numa farmácia, um verdadeiro ás na prescrição ilegal de medicamentos genéricos no balcão, um craque na decifração de letras garranchadas dos doutores.

Enquanto todos chorávamos em círculo, o jovem balconista estrábico, sabido como ele só, ditava para que eu anotasse o roteiro das canções dos Beatles a serem tocadas durante o velório, que era o desejo expresso de Dioleno Macarter Rérissom, nome de registro no decadente cartório de Bungalow Bill, Ceará. Abre aspas:

Antes de mais nada, se precisarem (e vão precisar) do meu atestado de óbito, chamem (e ouçam) Doctor Robert. Triste detalhe: ele não atende pelo SUS.

Mandei fazer um adesivo enorme com o silk Magical Mistery Tour. Está guardado dentro da tábua de passar roupas, embaixo da minha cama. Retirem com cuidado e preguem, por favor, na tampa do ataúde. Deus lhes pague, já que eu não o farei.

Se alguma criança presente ao recinto perguntar se eu morri, digam que eu estou apenas dormindo, e coloquem “I’m only sleeping” para ela ouvir. Comprem também um algodão doce, que logo ela para de chorar.

Toquem, em alto volume, “I want to hold your hand”, caso alguém se atreva a cantar que amigo é coisa pra se guardar do lado esquerdo do peito, mesmo que o tempo e a distância digam não.

Se, supostamente, alguma mulher declarar em lágrimas que tinha o meu amor, toquem primeiro “All my loving” e “She loves you”, para alegrar o seu coração (o coração dela, pois o meu já estará parado há tempos). Logo em seguida, para não criar falsas expectativas, arrematem o tributo com “All things must pass” e “Cry baby cry”. E fim de papo. A fila anda, minha filha.

Não somente toquem “Old Brown shoe”, mas me enterrem trajado com um par de sapatos mocassim de cor marrom. Estão guardados dentro do armário, na primeira gaveta, contando de baixo para cima. Por favor, não cometam o disparate de engraxá-los.

Antes que alguém comece a me enaltecer num discurso, ponham pra rodar  “In my life”. A letra, por si só, já diz tudo o que eu tinha pra dizer a respeito de mim, do que eu fiz e do que deixei de fazer na vida.

Se um padre, pastor ou policial sugerir uma derradeira oração antes de lacrarem a minha urna, toquem “Hey Jude” e preparem os lenços. E que todos os presentes, em coro, caprichem no refrão entoando o famoso “na na na na na na na”. Cantem esta parte repetidas vezes até as gargantas ficarem tão secas quanto o agreste.

Ao preencherem os cheques (Deixei dois deles assinados em branco, devidamente cruzados, os quais se encontram na escrivaninha, na gaveta do meio, dentro da biografia não autorizada de John Lennon. Autorizo vocês, meus amigos do peito, a preencherem os valores) para pagarem pelos sempre abusivos serviços póstumos da funerária, toquem, como forma de protesto, a canção “Taxman”. Para debochar dos papa-defuntos sacanas, terminem com “Money (That’s what I want)” e “You can’t do that”. Vai ser demais.

Enquanto o sexteto de vitaminados e voluntariosos amigos estiver carregando o meu esquife barato, toquem “With a little help from my friends”, emendando com “Come together”, “Carry that weight” e “The long and winding road” (afinal, o caminho até o buraco será mesmo bem longo). Se algum dos companheiros alegar cansaço, toquem “We can work it out”. Quem sabe assim o cabra se anima.

Se a tarde estiver chuvosa, triste, e pintar uma melancolia, toquem “Rain”. Se, ao contrário, um sol delicioso danar a lamber o gramado verdinho do cemitério, toquem “I’ll follow the the sun”. Será lindo, principalmente se um Blackbird cantar no flamboyant.

Para escrever na lápide, suplico aos amigos que, através de votação aberta e democrática — ao contrário do que hoje ocorre no Congresso Nacional — vocês escolham, ao som de “Let it be”, uma dentre as três opções a seguir: “Nowhere man” /Free as a Bird”/ “P.S. I love you”. E dá-lhe pá de cal em cima.

Para fechar o funeral com um grammy de ouro, já que cemitério não possui terraço, que uma banda cover dos Beatles toque “Don’t let me down” sobre a minha sepultura.

The end.