É grave o estado de saúde do amor em nossos corações

É grave o estado de saúde do amor em nossos corações

Se Deus existe, não vai querer coisas assim. A morte de Lola foi acidental, ora e essa! Uma fatalidade, é como se diz. Meu pai, justo ele, me chega com uma filhote de shih-tzu nos braços. Não pude evitar. Já temos uma nova cadelinha saracoteando pela casa. Demos a ela o nome de Cacau, por causa da pelagem com cor encardida. Ela sucede a Lola, morta, de repente. A esperança, não; a crença individual de que a humanidade, finalmente, tomará um jeito morreu em mim já faz um tempo. Vivo de inventários. Isso aconteceu aos pouquinhos. Também não tive como evitar. Hoje, agora, sempre, célere como um coelho, quem morre é o tempo, numa velocidade miserável.

E por falar na morte, um dos temas que mais repilo, não sei se souberam, mas, mataram a tiros um médico aqui da minha cidade, durante a folia de carnaval. Latrocínio, diz a polícia. A consternação, como era de se esperar, foi enorme, porém, nada que afetasse de forma definitiva os festejos da maioria das pessoas. Feriados prolongados são terríveis, vocês sabem. Parece que a vida para. A do doutor parou, literalmente, no cano de uma pistola.

A sensação de insegurança segue azedando. Fiquei particularmente aturdido com o elevado número de pessoas cobrando das autoridades em segurança pública a captura e o extermínio dos criminosos responsáveis. Alguém mais exaltado com o bárbaro acontecimento comparou os facínoras às baratas. Lembrei-me de Kafka. Cansei de ler e de ouvir que “Esse tipo de gente não tem mais conserto, é preciso matar, e que Deus nos perdoe”. Não sei se Deus vai perdoar, se será flexível o bastante para remediar mais truculência, ao relevar pecados desse quilate. Não gosto da palavra pecado. Remete a castigo. Nem sei por que a usei. Desculpem-me. Ao menos, pequemos, já que somos os pequenos fantoches nas mãos invisíveis de uma trama existencial com propósitos desconhecidos. Não esperem grande coisa de mim: eu evoluí quase nada desde o último texto, quem dirá, numa encarnação inteira.

Faço coro com a dor, o inconformismo e a revolta dos familiares e amigos da vítima. Posso compreender como natural a fúria dos meus pares, vítimas da escalada de violência urbana que parece não ter fim. Exterminar as baratas, contudo, não vai garantir grandes coisas. Alheia às minhas reflexões, certa das minhas tribulações, Cacau lambe-me os pés até cochilar. Sofro de insônias. Ainda que seja uma filhote, em matéria de desilusão, ela sabe quem manda na casa, a quem deve lamber em primeiro lugar, com muito mais devoção e esmero.

Espero não estar passando a impressão de ser um defensor de bandidos. Nada disso. Sou um observador, um pensador e, pensar, às vezes, fede à borracha queimada. A morte que me parece a mais decente é o autoextermínio, por meio do qual, nos dizeres do poeta Mario Quintana, se sai da vida com altivez, batendo a porta. Não acredito que matar celerados seja solução. Poesia, sim; poesia resolve, mas, pouca gente dá crédito. Para muitos desses marginais, a morte até será uma espécie de prêmio, por causa da vida sofrível que levam. Eu acredito no encarceramento longo e justo como forma de correição. Se não endireitará o imputado, ao menos lhe servirá de calvário para as lembranças. É difícil fugir dos pensamentos.

Uma chuva fraquinha cai sobre a grama. Deve cair mais triste do que o habitual no quintal da casa do médico, que não vejo há mais de 25 anos, uma vergonha, em se tratando de moradores de uma mesma cidade. Não, não vou à Missa de Sétimo Dia. Sinto muitíssimo. Por isso, escrevo. Um homem amolece depois de ter filhos. A autocomiseração, que não levará a lugar nenhum, senão a mais um texto triste, ocupa a minha varanda. Cacau dormita entre os meus pés. Seu calor é um gosto alento. Será que os cães sonham? Eu sonho, mas, tá mais difícil a cada dia. C’est la vie. C’est la mort. C’est l’humanité.