Diz-me por onde olhas e te direi quem és

Diz-me por onde olhas e te direi quem és

Primeiro: há que se ter olhos para enxergar os detalhes miúdos dos vaivéns urbanos. Até para não dar, logo de saída, topadas em pedras soltas das calçadas, costumeiramente abandonadas pela prefeitura. A propósito, por onde passeiam seus olhos habitualmente?

Se esquecem grudados  nas  lembranças de anteontem, em algum seriado puído da tv aberta,  talvez procurando, para matar o tempo que às vezes não passa, vestígios de caspa no pente desdentado do banheiro?

Andarão seus olhos fuçando a carteira do marido, da namorada, do amante, do ficante, no intento de descobrir fartura ou precariedade de notas surrupiadas. Talvez se encontrem perdidos como bolas de gude em jogo de praça antiga e ainda contemplem agora um pouco sonolentos, outras quinquilharias da existência, inegavelmente um tanto amarfanhada.

O aperto de mãos furtivo entre cunhados debaixo da toalha de mesa da churrascaria — que uivam colesteróis em pleno domingo de suor, também não escapa à acesa e ladina varredura. Olhos presos no sapato novo da colega de trabalho, cujo tom é exatamente o seu preferido. Compridos de inveja ao admirar a pele bronzeada do outro colega de trabalho que ri à toa, o desgraçado, contando do final de semana praiano e descompromissado, entre caipirinhas e deliciosos mergulhos.

Haverá olhos bonitos de olhar? A pergunta assoma neste instante.  Donos de brilho repentino, luz clara, safra guardada na adega das recordações-de-todo-o-sempre. Normalmente nossa curiosidade visual fareja dissimulados esconderijos da rotina. Segredos trancafiados em gavetas do vizinho, que pretendemos expor a qualquer custo.

Olhos esfaimados, dentados, vorazes e sanguinolentos, visando encontrar no ziguezague de filas intermináveis diante do filme de estreia, uma vaga esperta para se enfiar sem ser notado. Quem sabe até, neste momento, usar com toda competência, da cara de pau frequente, porém disfarçada — e com a voz açucarada demandar a um estranho o obséquio de comprar seu ingresso. Afinal, motivos não faltam: o joanete estufado no seu pé direito grita há horas por socorro sem ser ouvido nem acudido.

Olhos de roubar a breve leitura do jornal do dia, depositados de soslaio no passageiro sentado ao lado, que durante o curto trajeto do metrô, concentra-se para sua sorte na abençoada página do jogo esportivo de ontem, com a presença do  seu time de futebol  de coração.

Aquele anel ali, hein, da mulher de cor de rosa, entretida com uma desavergonhada e adolescente lagosta, à qual se aferra sem piedade nem comedimento, será de ouro ou de banho de ouro barato? Humm. Se pudéssemos nos certificar.  E o cheiro de alho para lá de desagradável, exalado incontinenti das axilas do velho garçom, um odor devastando o spray de eucalipto do ambiente de que todos já se deram conta. Uma ideia insensível reside em avisar ao gerente do fato. Nada mais justo, entretanto. Sem dúvida, as próximas providências administrativas acarretarão menores prejuízos à frequência local.

Os olhos procuram falhas, micos, defeitos, mentiras, impropriedades, suspeitas. Fixar-se nas indecências explícitas dos políticos aladroados, cujas mãos denunciam, mesmo que discretamente, os próximos subornos contra o povo idiota e eternamente crente.

Um sentido que jamais dorme ou relaxa, ainda que os flagremos cerrados, quando a noite se deita, buscando aquietar-se atrás das cortinas de pálpebras trêmulas.

Como críticos teatrais implacáveis promovem escaneamentos anônimos e investigações minuciosas, sentados nas plateias da vida, dissecando  cenas quaisquer que inundam nosso cotidiano de possibilidades.

Será que em vez de averiguar se a irmã do seu marido fez plástica facial e não contou para ninguém, dá para você usar os olhos de dentro?  Fazer isso também, no lugar de afirmar com convicção que, por debaixo do colante da loura da academia, subjazem os furos da renitente celulite, bem que se desconfiava. Neste momento percebem-se salivas de prazer esverdeado, escorrendo do canal lacrimal direito de um olhar mais incauto.

Nova inquietação: em vez de atrelados às formas, embalagens e aparências, poderão voltar-se os olhos sobre certos desejos em eclipse ainda não despertos? Palavras de amor sempre adiadas. Despedidas relacionais difíceis de finalizar.

Conseguiremos substituir os olhos-de-miragem, os espelhos-fake da observação nas ruas, por órgãos similares, mas revestidos de pálpebras de veludo? Olhar macio e limpo recendendo a jabuticabas maduras, umedecidos por mel florado em laranjeiras.

Um olhar misturado às flores do campo, às borboletas que dançam bonito ao som do vento, às crianças soltando balões coloridos à volta da lagoa que margeia um dos bairros da sua cidade.

Quem sabe consigamos s plantar milagres em nossas ordinárias e repetitivas contemplações do entorno. Devolver aos olhos a saúde e as coloridas serpentinas dos sonhos aninhados em neurônios sagazes e arteiros que povoam a tenra infância.

Olhos de maça verde, de gato recém-nascido, de tartaruguinhas mirins esbanjando lépidas sua buliçosa e pequena euforia pelos rios da nossa generosa terra.

Talvez não seja tão difícil assim passearmos com nossos olhos por outras instâncias inexploradas da existência. Nasce então o  convite.  Vamos experimentar?