Vende-se cola para corações partidos

Vende-se cola para corações partidos

A geografia de amar não se encontra nos mapas das enciclopédias. O romance começou num café em Paris, perto do Louvre. Deu a ela um livro, a versão francesa de “Vende-se Cola Para Corações Partidos”. Ela riu do título. Dentes branquíssimos. Tocou a louça fina com seu batom vermelho rutilante. E se ela estiver menstruada? E se ela for socialista? E se lhe comprasse um diamante? Não tinha dinheiro para bancar sonhos perdulários de consumo. Queria consumi-la ali mesmo, junto com o chantilly da mesa ao lado. Fantasias masculinas, vocês sabem. Um pequeno incidente, então, se deu: a xícara se desprendeu dos seus dedinhos e… Paft!. Partiu.

Partiram no primeiro trem para Londres. Vinte mil léguas submarinas. No fundo, no fundo, dentro de um túnel sob o Canal da Mancha, ele queria, o quanto antes, mergulhar no seu colo macio. “Que rufem os tambores: vou saltar nos braços dela”, pensou, ingênuo, como se fosse um moleque na adolescência. Cogitou roubar um beijo, mas, desistiu depressa. Muito se dizia, naqueles dias, sobre o assédio sexual dos homens contra as mulheres. Cinéfilo, comentou que, mesmo idosa, Catherine Deneuve continuava uma mulher linda e atraente. Ela fechou o Júlio Verne, suspirou e, gentilmente, concedeu a ele a delícia dos seus lábios. Teria pensado alto demais? Quando se deu conta já caminhavam de mãos dadas em frente ao Big Ben. Bem que ele desconfiava: as engrenagens do tempo continuavam infalíveis, portanto, já estavam atrasados há exatos três beijos. Pontualidade britânica, mais a velha fome de lenhador: não via a hora de comê-la num quarto de hotel, devorá-la como se fosse um croissant.

Tocaram para Liverpool. Um banda de polacos trajando terninhos cinzas tocava “She loves you”, dos Beatles, num pub que era a réplica do Cavern. Urrou feito um primata. Ela riu. Ela ria de quase tudo. Refletiu por que era tão difícil para a maioria dos casais manter aguçado o bom humor dos primórdios, quando os relacionamentos se prolongavam. Sem maiores delongas, aproveitou a dúvida e a companhia da moça para realizar um sonho antigo: atravessar descalço a faixa de pedestres da Abbey Road. Fizeram a travessia, em fila indiana, ao som da cítara tocada por George Harrison em “Within you without you”. Beijaram-se, demoradamente, na calçada do outro lado da rua. Ela disse que preferia o Paul; ele, Lennon. “Strawberry fields forever”: vistosos brilhos labiais com sabor de frutas. Seguiram para a Alemanha com aquele gostinho de morango na boca.

Seus cabelos loiros-esvoaçantes eram um convite para festa. Encheram a cara de cerveja numa Oktoberfest em Munique. No dia seguinte, acordaram com uma ressaca danada do resto da humanidade e foram chorar as mágoas no Memorial do Holocausto em Berlim. Era um castigo, uma tormenta, uma tortura pensar que, em breve, estariam na berlinda, ressentidos por protagonizar o fim de uma viagem inusitada, uma aventura irrefletida, irresponsável de acordo com os parâmetros de segurança, onde se sobrevivia num mundo repleto de violência e iniquidade, mas, que tinha unido de forma tão contundente as suas almas. Em tempo: ele era um ateu amargo; ela, uma atriz com saliva doce e um senso de humor deveras aguçado.

O futuro não lhes sorria. Não havia o futuro, estavam convictos. O presente, este sim, escancarava os seus dentes. Decidiram, então, torrar as economias que restavam viajando a esmo. Uma decisão conjunta, desajuizada, desarrazoada, porém, contente. Não havia um itinerário pré-estabelecido. Seguiam para onde apontasse o nariz e a pena criativa de escritor.

Na Áustria, visitaram a casa onde Hitler teria nascido e dançaram a valsa vienense de que falava Drummond. E agora, José, que aquilo parecia ser o amor? Fumaram maconha, falaram em viver juntos, ficaram doidões em Amsterdã. Enquanto fotografava, ela comentou que a Torre di Pisa devia ser o caralho da Itália. Gargalharam. Ele teve uma franca ereção ao fantasiar a bela companheira de viagem adentrando a Fontana di Trevi, como fizera Anita Ekberg, em “La Dolce Vita”. Sentiam na língua o gosto amargo do fim se aproximando. A grana minguava. Durante uma visita a La Sagrada Familia, quase acreditou que Deus existisse, só para lhe pedir que concedesse o privilégio se unir àquela criatura, uma mulher bonita e misteriosa que rezava de joelhos dentro do suntuoso templo da igreja católica. “Ajoelhou, tem que rezar, mon chéri”, fantasiou, só pra variar.

Fim da viagem. De volta ao ponto de partida, confirmando as previsões, presenciaram a derrocada da paixão sob o Arc de Triomphe. A autocomiseração foi implacável. Afagaram-se pela última vez. Ele seguiu pela Champs Élysées; ela, pela Charles de Gaulle.

Ilustração: Jack Vettriano