Balzac, o autor que matou a esperança e revelou a desfaçatez humana

Balzac, o autor que matou a esperança e revelou a desfaçatez humana

O nome do livro é “Eugénie Grandet”, de Honoré de Balzac. A história envolve três famílias de província: a da protagonista Eugénie, os Cruchot e os Grassins, ambas disputando as mãos da moça para ver qual delas herdará a fortuna do vinhateiro Félix Grandet. Inesperadamente Eugénie apaixona-se por um primo, Charles, cujo pai suicidou-se depois de entrar em falência, em Paris. Resta aos candidatos apresentados pelas respectivas famílias disputarem com Charles o dote da moça, que ainda não é fabuloso.

Charles, renegado pelo tio Félix e pobre da noite para o dia, vai para as Índias, obstinado a construir sua própria riqueza. Fica a promessa de, quando voltar, casar-se com a prima. Eugénie o aguardará, mas quando ele volta, sete anos depois, já não é o moço romântico de antes. Cético e amadurecido, casa-se com uma nobre que, além do dote, abre a Charles todas as portas de Paris (Eugénie é provinciana). Charles admite expressamente, por carta (em quê se desculpa com a prima), que se casara por interesse. Ela, é claro, padece a traição.

O que Charles ainda não sabe é que a prima, romântica, nunca se casou, fiel à sua própria palavra. E é tarde quando, por fim, ele descobre também o tamanho do dote que perdeu ao julgar ter agido com a máxima esperteza: a fortuna herdada por Eugénie é de 750.000 libras, nove vezes maior que a dele e uma das maiores da França!

Resumos como este não têm graça se o leitor não conhecer o passo a passo da história de Eugénie Grandet. Se não saber como Balzac preenche este enredo com o veneno dos conluios, dos interesses em jogo, das paixões e cálculos construídos cena a cena, uma após a outra, até reconstituir, de um lado, uma cultura material especulativa e, de outro, até expor a natureza humana sem nenhum disfarce, apesar da dissimulação dos personagens. Apenas Eugénie, sua mãe e a empregada, Nanon, escapam da terrível engrenagem social que está por trás de um dos mais fascinantes retratos da burguesia francesa durante a Restauração (1814-1830).

“Eugénie Grandet” é, para começar, uma grande ironia, conforme prova seu desfecho. É também o embate entre dois mundos: o do pai Félix Grandet, materialista insensível, e o de sua filha Eugénie, romântica até as lágrimas. O que o sovina diz às vésperas da extrema-unção, diante de um punhado de “luíses” (dinheiro) sobre a mesa? “Isto me aquece!” É o contrário do que o trio feminino de destaque (Eugénie, sua mãe e Nanon), simbolizam: a fé no transcendente. Balzac põe em disputa os valores cristãos da moça — o amor, a piedade, a compaixão — e os valores materialistas do velho rabugento. Pelo menos até o cristianismo ser absorvido como religião oficial da classe dominante e entrar em conflito com o deus deste mundo: o dinheiro. Adivinhe quem leva a melhor?

Existem escritores de certa escala entre os quais é impossível, aliás, reconhecer os melhores. O máximo que conseguimos é estabelecer preferências. Nós aprendemos a chamar tais escritores de “clássicos”, os quais lemos para constatar que não há nada além, em matéria ficcional. O que os diferencia entre si é, talvez, o assunto. Sob este critério, é possível que nenhum deles supere Balzac quando se trata de abordar as relações humanas sob a perspectiva econômica. Econômica? Sim: a economia é o móvel dominante das ações que enformam o conteúdo de “Eugénie Grandet”.

Honoré de Balzac
Eugénie Grandet, de Honoré de Balzac

Este livro cheio de números e somas, publicado em 1833, (e de resto todo Balzac) poderia ser lido por estudades de ciências humanas com o mesmo proveito com que leem os clássicos da interpretação social — no que apenas faço eco à opinião de comentaristas consagrados. Otto Maria Carpeaux dirá que tais romances são “monografias de tamanho reduzido, mas dizendo tudo sobre certo bairro, certa profissão, certa classe”. Ele é, como se diz, “um monstro”, admirado e citado, entre outros, por Karl Marx, a quem interessava mais do que a ninguém desvendar as relações sociais capitalistas.

Mas muitos cientistas sociais ignoram essa importância para o conhecimento — ou antes o detalhamento — da classe burguesa. Balzac intuira, muito antes do advento da História Cultural, toda a importância dos registros materiais para a compreensão de uma mentalidade. Depois de descrever minuciosamente uma típica casa de Saumur (a cidade onde vivem os Grandet), ele adverte que “Lá está, inteira, a história da França”. Pois tivemos de esperar Lucien Febvre e Gilberto Freyre para concordar com isso e transformar a intuição literária em método cientifico.

Para Balzac, a sociedade é tão importante quanto os indivíduos. Impossibilitado de reduzi-la (abstração que é), o escritor parece estudar os homens para retratar o seu conjunto, meta suprema dos gigantescos e efetivos esforços literários que empreendeu, até edificar “A Comédia Humana”. É por isso que, descontada a literatura, sobressaem, no fim de cada “estudo de caso” balzaquiano, preciosas análises históricas, sociológicas e econômicas da França, na primeira metade do século 19. “Eugénie Grandet” é, como se sabe, apenas um dos mais de 80 livros dedicados a estudar a nascente era burguesa. Aqui, em particular, temos o retrato de um proprietário rural, Félix Grandet, enriquecido à base da usura, de juros e da especulação da renda pública, até ficar milionário.

O puro afeto de Eugénie não é o mais relevante, nesta saga social, basta ver o desfecho reservado à personagem. As paixões que realmente contam neste mundo são a ambição e a hipocrisia, porque são também os sentimentos sociais mais comuns. Cada “matilha” — Cruchot e Grassins — coloca na balança a própria renda para ver quem pode mais, ao disputar a mão de Eugénie. Tanto Félix quanto os coadjuvantes dessa história são simples jogadores, frios, racionais e metódicos, sob pena de cair na miséria ou dela não sair. O que o primo Charles faz, ao entrar de cabeça neste jogo, é apenas correr da miséria, voltando a Paris com o título de Conde d’Aubrion.

Em termos de interesse, Félix Grandet sobrepuja Eugénie, tanto quanto sobrepuja qualquer outro personagem do romance. Pois é ele, e não ela (apesar da grandeza de seu caráter) o que Balzac e os cientistas sociais definem como “tipo”. Grandet, o avarento intuitivo, não é apenas Grandet: é uma mentalidade comercial. Neste sentido é também uma potência histórica, corporificada num homem que reapresenta a classe burguesa e seus interesses obsessivos, de natureza material. A arte de Balzac está em esclarecer, por meio de uma família ficcional, como as relações sociais se construíam naqueles tempos.

Pré-romântico, Balzac não possui ilusões românticas, segundo se extrai da sorte de Eugénie Grandet. Muito antes que os sucessores literários viessem subverter os valores burgueses com sua efusão sentimentalista, Balzac já sentenciava que “a vida é um negócio”. E muito antes que o amor romântico vingasse nos livros, Balzac já raciocinava a relação conjugal como simples contrato. No fim o que resta são os inventários, as partilhas, as heranças. Apenas os cordeiros — como Eugénie, assim representada — duvidavam disso, ainda que o amor não fosse absolutamente critério das famílias na hora de casar seus filhos.

Desde o “Gênesis”, na Bíblia, parentes se voltam contra parentes, portanto não há novidade no pai que aplica um golpe na própria filha, como faz Grandet ao induzir Eugénie a renunciar a herança materna. O que assusta é que Caim é a barbárie, enquanto Grandet é a civilização.

Bem vindo, leitor, ao mundo moderno!