A pobreza de espírito mata mais do que a pobreza material

A pobreza de espírito mata mais do que a pobreza material

Quando a porcaria da TV começou a chuviscar a imagem, a vizinhança finalmente se tocou que havia alguma coisa muito errada na Travessa dos Incautos, ali na altura da Baixa da Égua. Urubus atazanavam, pousavam robustos sobre as antenas nos telhados. A fedentina passou a ser percebida também pelo olfato humano. Muita gente pensava que o fedor provinha do ribeirão de cocô que cortava o bairro. Ledo engano. Havia cheiro de carniça-noir: algum bicho tinha estropiado.

Indignados com o péssimo sinal dos tempos, ou melhor, com o péssimo sinal do satélite na TV, os moradores saíram à rua para se aglomerar em frente ao portão da casa número 666, de onde, supostamente, provinha o mau cheiro e todo o problema. Cães uivavam lá dentro. Um sujeito deu pezinho pra outro sujeito. Então, aquele que trepou no muro deu uma espiadela e contou para os demais que a cachorrada parecia angustiada, triste, acabrunhada, pois, caminhava cabisbaixa, trombando os focinhos, como se os dogues estivessem preocupados com alguma coisa; a raiva humana, por exemplo.

Desde a última contagem, a vizinhança sabia que a viúva, que morava só com as suas mágoas e verrugas, tinha adotado, pelo menos, 27 cães abandonados, abrigando-os na sua casinha modesta, a maior parte dos bichinhos sem raça e sem futuro, pareciam até fugitivos de guerra humilhados nas fronteiras da Europa, se é que me entendem. Com certeza, um dos cães tinha virado carniça e a mulher não tomara as devidas providências fúnebres para enterrar ou atirar a carcaça no lixo.

Tocaram a campainha. Ninguém atendeu. Bateram palmas. Nada. Apuparam. A matilha ganiu impaciente e danou a unhar o portão, querendo escapar. Alguém disse que ia telefonar pra polícia. Era crime incomodar o sossego das pessoas. Ali, pouca gente confiava em policiais, mas, consideravam que eles fossem um mal necessário, já que os meliantes perambulavam a rodo pela região. No início, bateu uma preguiça, uma preguiça danada nos soldados para deixar o quartel. Era domingo, ninguém estava a fim de partir em diligência para atender ocorrência em bairro de pobre. Um cidadão insistiu pelo telefone que tinha cheiro podre no ar, que tinha morrido cachorro graúdo, era uma questão de saúde coletiva, que os moradores iam invadir o casebre, podia dar em confusão e mais mortes; enfim, o sujeito suplicou para que os homens viessem o quanto antes, a fim de averiguar a situação. Fartos pratos de chambaril e dois litros de Coca-Cola estupidamente gelada já estavam garantidos pela comunidade local, se eles acudissem ao pleito.

Chegou a viatura, uma droga de um Volks enferrujado, caindo aos pedaços. Alguém poderia se ferir e contrair um tétano ao se cortar naquela lata velha sobre quatro rodas. O Governo bem que podia investir mais recursos em Segurança Pública, ao invés do pagamento de propinas para empresários e correligionários. Aquela política do toma-lá-dá-cá, de foder com a vida dos trabalhadores precisava ter um fim. Um dos milicos ouviu o comentário com viés socialista e esbofeteou o faroleiro na fuça. O sangue jorrou bonito pelas narinas. A multidão achou graça e riu desbragadamente como se não fosse povo. O que mata mesmo é a pobreza de espírito.

Havia um problema. Como entrar na casa sem ser atacado pela matilha indócil? Algum moribundo mental apareceu com frascos de Rivotril que tomava todas as noites para tratar insônia e remorso. Encharcaram nacos de carne-de-segunda e lançaram sobre o muro. A cachorrada engoliu aquele banquete saboroso sem sequer mastigá-lo. Não deu 5 minutos, os bichinhos estavam todos fora de ação, dormitando sobre a grama.

Um policial gorducho meteu um coice no portão, como se o zarcão fosse a cara espantada de um investigado. O portão bambeou, o cadeado cedeu e abriu feito um supercílio bem-chutado. Voilà! Apesar do reduto pertencer a uma megera inofensiva que morava com canídeos, os militares entraram se cagando de medo de levar chumbo. Todo mundo tem medo de morrer, até a polícia; os suicidas, não; os suicidas são corajosos. As portas estavam escancaradas, de tal forma que não foi preciso escoicear outras vezes.

Revistaram o casebre. Merda de cachorro pra todo lado lá dentro. Nem sinal da proprietária, nem de bandido otário escondido embaixo da cama. Pensando bem, que trouxa invadiria a residência de uma mulher idosa, diabética, dependente de insulina e de solidão, em avançado em estado deterioração mental, para furtar quinquilharias sem valor? Como diria um famoso deputado federal da extrema-direita que representava o povo no Congresso Nacional: uma mulher daquelas não servia sequer para ser estuprada.

Loucura às favas, os policiais, que não eram burros nem nada, mas, se amarravam em tortura, em chutar cabeças e bater carteiras de suspeitos, foram procurar no quintal o tal cachorro morto, motivo da discórdia com os vizinhos. Um dos integrantes da autoridade policial gritou “ui!” e voltou apressado com aquela carinha de quem está prestes a vomitar. Seus parceiros taparam o nariz, decidiram enfrentar a catinga e seguir até o fundo do lote, onde se depararam com uma pequena horta em franca produção; um pé de pitanga carregadinho de pitangas, é óbvio; garrafas vazias, armazenadas de cabeça para baixo, conforme recomendam as autoridades sanitárias; roupas esfarrapadas; uma ossada humana ainda com fiapos de carne adocicada e centenas de moscas metálicas zunindo faceiras.

Um filhote serelepe correu com uma costela presa entre os dentes e foi perseguido pelo policial gorducho, que tropeçou e se estatelou no gramado. A cena foi bizarra, mas, tão bizarra, que fez a galera que se acocorava sobre o muro mijar na roupa de tanto rir. Eu não. Eu preferi contar a história.