Paul McCartney está velho

Paul McCartney está velho

São Paulo, 15 de outubro de 2017. Não se amofine. Você mordeu a isca. Eu também adoro Paul McCartney. Aliás, isso aqui é uma declaração de amor, pode crer. Não sei como a coisa funciona noutros países, noutras culturas, afinal de contas, li pouco, viajei pouquíssimo, não conheço o Tibete, não sou tão esperto quanto você imagina que eu seja, nem de longe eu seria aprovado pelo ENEM, pelo exame de fezes da ABL ou pelo escrutínio das prostitutas do Buraco Azul, por exemplo, graças a Deus, portanto, vou usar como parâmetro o país onde nasci, cresci e ralei os meus joelhos. Às vezes, dá uma vontade danada de me mandar daqui. Daí eu me lembro dos meus antepassados que já morreram e o ímpeto passa rapidinho. É preciso transformar, construir o que tem pra ser construído.

Vou ficando no Brasil, uma nação que claudica entre paradoxos, onde o adjetivo “velho” é tantas vezes utilizado de forma agressiva, raivosa, vulgar, pejorativa, com a intenção de agredir, humilhar, diminuir, “colocar uma pessoa no seu devido lugar”. Mas que lugar é esse, porra?! Lembre-se, se você é um “velho”, sob o ponto de vista de muita gente, você é ultrapassado, desimportante, um embaraço a ser resolvido. Nunca antes na história desse país se recorreu tanto às cuidadoras para se cuidar daqueles que não se tem tempo para cuidar. Ficou meio confuso? Ótimo. Era essa a intenção.

É mais comum do que se imagina que gente idosa, por aqui, seja tratada como uma espécie de mobília antiquada da qual não dá pra se livrar, vender para um prego, simplesmente não dá pé, não se entulham velhotes nas caçambas da calçada para que os lixeiros, aqueles carinhas risonhos e fanfarrões, despejem-nos quase vivos, quase mortos, dentro de caminhões escandalosos que mijam chorume pelas ruas. Odeio quando o caminhão de lixo passa de madrugada. Eu adoraria lambê-la até o raiar do dia, todo santo dia, até ficar bem velhinho. Há que se tolerar tamanho estorvo. Não me refiro aos velhotes, nem à mina. Tô falando dos caminhões. Lapsos de memória. Ouvidos que não escutam. Olhos que não reconhecem. Mãos que tremem na hora H e nas outras letras do alfabeto também. Pernas que se esquecem dos caminhos. Gônadas que não perpetuam mais a espécie. Esfíncteres que vazam sem a menor pompa durante um banquete para quinhentos talheres da high society. Coisas assim me deixam down.

Não quando se está no estádio Allianz Parque lotado, num show de Paul McCartney, eu, um merdinha-de-nada, um nowhere man, um zé-mané no meio da multidão de mais de quarenta e cinco mil seguidores. Preciso confessar: minha religião é a música. It’s only rock’n’roll but I like it. Aleluia, irmãos! Amém! Amei quando uma mocinha ao lado balbuciou “Esse homem não é desse mundo”. Pronto. Pensei que fosse só comigo. Eu já não me sentia mais um ET. O show estava marcado pras 9 p.m. Começou às 9 p.m. , iniciais de Paul McCartney. Pontualidade britânica. O tempo parecia ter parado por mim.

Eu me sentia um verdadeiro lord. Deus, não; não se confunda na tradução; eu me sentia um lord, um senhor, um cavalheiro inglês, saca? Eu tinha classe, chapa. Era a quinta vez que eu assistia ao Macca. Foram quase 3 horas de show, um ícone aos 75, esnobando jovialidade, vitalidade, sensualidade, alternando a guitarra, o violão, o famoso contrabaixo com formato de violino (marca registrada de Paul), o piano com desenho psicodélico, o ukelele e as gentilezas ditas ao público num português gozado. Tudo isso sem tomar uma única gota de água. Por que será que Paul McCartney não sente a sede? Ah, então é isso, o sujeito não é desse mundo.

Sim, teve aquele lance do mantra, do “na-na-na-na-na-na-na” de “Hey Jude” cantarolado em uníssono pela multidão extasiada, as luzes do estádio apagadas, os telefones celulares empunhados para o alto, brilhante, tava tudo brilhante, a vida parecia perfeita e brilhante, tudo lindo, as luzes piscando no breu fizeram-me lembrar do céu da minha terra. Fiquei terrificado. Senti uma forte onda de amor como há tempos não sentia. Justo eu, um homem com coração de pedra, um descrente, um sujeito aos 52 que andava convivendo mal com o fato de estar envelhecendo.

Aprendi mais uma. Quando eu ficar velho, se eu ficar velho, só quero ficar velho como Paul McCartney está sendo velho, ou seja, levando amor da mesma forma que se dá amor. Ah… como eu amo esse cara…