Admito: sou interno de um hospício

Escrevi, numa Carpe Diem anterior, sobre inícios clássicos de livros; hoje, como prometido, volto ao tema com outros incipit (meu jovem editor: sem variação no plural aqui, por favor). Não são exatamente “clássicos” de melhores começos de livros, mas sim, digamos, parte da minha lista maníaco-idiossincrática.

Maníaco consumado que sou, a lista é obviamente longa. Começo com “Fahrenheit 451”, de Ray Bradbury. Bradbury descreve um futuro distópico em que os livros são proibidos e devem ser queimados, e seu início é direto e, eu diria, tem um quê de genial: “Queimar era um prazer”. Não se enganem: muito tutano é gasto para se chegar a essas exatas quatro palavras, tão precisas que pouco mais é necessário para antecipar o que virá no grande romance de Bradbury. Nunca o leram? Pois corram à livraria mais próxima: “Fahrenheit 451” pode nos ajudar a criar anticorpos contra tentativas de controle cultural e de ideias, perigo sempre subestimado.

Albert Camus: Hoje, mamãe morreu. Ou talvez ontem, não sei bem. Recebi um telegrama do asilo: ‘Sua mãe faleceu. Sentidos pêsames’. Isso não esclarece nada. Talvez tenha sido ontem

E o que dizer sobre a perfeita frase inicial de “O Mensageiro”, de L.P. Hartley? “O passado é um país estrangeiro: lá as coisas são feitas de maneira diferente.” Por essa frase eu abandonaria a família e até cometeria crimes. “O passado é um país estrangeiro” — grande fedapê, esse Hartley.

“Hoje, mamãe morreu. Ou talvez ontem, não sei bem. Recebi um telegrama do asilo: ‘Sua mãe faleceu. Sentidos pêsames’. Isso não esclarece nada. Talvez tenha sido ontem.” Albert Camus dá o tom de estranheza e distância logo nesse início de “O Estrangeiro”, mostrando o alheamento do personagem-narrador, fundamental para a trama.

O início de “O Homem Sem Qualidades”, de Robert Musil, talvez seja a mais completa descrição de tempo já escrita: “Uma pressão barométrica mínima pairava sobre o Atlântico; dirigia-se para leste, rumo à pressão máxima instalada sobre a Rússia, e ainda não mostrava tendência de se desviar dela para o norte. As isotermas e isóteras cumpriam suas funções. A temperatura do ar estava numa relação correta com a temperatura média do ano, a do mês mais frio e a do mês mais quente e a oscilação aperiódica mensal. O nascer e o pôr do Sol e da Lua, a variação do brilho da Lua, de Vênus, do anel de Saturno, e outros fenômenos importantes transcorriam segundo as previsões dos anuários de astronomia. O vapor d’água no ar estava na fase de maior distensão, a umidade era baixa. Numa frase que, embora antiquada, descreve bem as condições: era um belo dia de agosto de 1913”.

Longo? Vamos então a Samuel Beckett, outro que descreve o tempo — no início de “Murphy” —, sendo, contudo, sucinto: “O sol brilhava, sem alternativa, sobre o nada de novo”. Na dúvida, fico com os dois incipit.

Samuel Beckett: O sol brilhava, sem alternativa, sobre o nada de novo

Falando em Beckett, que tal a abertura de “O Inominável”? “Onde agora? Quando agora? Quem agora? Sem me perguntar. Dizer eu. Sem pensar. Chamar isso de perguntas, hipóteses. Ir adiante, chamar isso de ir, chamar isso de adiante.”

O italiano Italo Calvino, em “Se Um Viajante Numa Noite de Inverno”, causa-nos estranheza em outra abertura que não se esquece: “Você vai começar a ler o novo romance de Italo Calvino, ‘Se um viajante numa noite de inverno’. Relaxe. Concentre-se. Afaste todos os outros pensamentos. Deixe que o mundo a sua volta se dissolva no indefinido. É melhor fechar a porta; doutro lado há sempre um televisor ligado. Diga logo aos outros: ‘Não, não quero ver televisão!’. Se não ouvirem, levante a voz: ‘Estou lendo! Não quero ser perturbado!’. Com todo aquele barulho, talvez ainda não o tenham ouvido; fale mais alto, grite: ‘Estou começando a ler o novo romance de Italo Calvino!’. Se preferir, não diga nada; tomara que o deixem em paz”.

E não há, claro, como ficar indiferente a Toni Morrison em “Paraíso”: “Eles atiram na branca primeiro”. Cinco palavras e já sabemos que há um assassinato e provavelmente vai haver outro.

Mencionei no meu texto anterior que Amós Oz entende o começo de um livro como um contrato entre escritor e leitor. Uma nota promissória, creio, seria a expressão mais exata. Pois um início como o de “The Towers of Trebizond”, de Rose Macaulay, do qual não conheço tradução em português, traz em poucas linhas promessas e promessas que devem ser resgatadas pelo desenrolar da trama: “‘Take my camel, dear’, said my aunt Dot, as she climbed down from this animal on her return from High Mass”. Se puderam, leiam o livro: a autora cumpre nele as promessas de aventura feitas nessas linhas iniciais.

Cormac McCarthy:  O menino é pálido e magro, usa uma camisa de linho puída e esfarrapada. Sua família é tida por cortadores de lenha e carregadores de água, mas seu pai na verdade sempre foi um mestre-escola

Há mais, muito mais. Thomas Pynchon, “O Arco-Íris da Gravidade”: “Um grito atravessa o céu. Já aconteceu antes, mas nada que se compare com esta vez”. Depois disso, quem teria coragem de abandonar a leituras das páginas restantes?

Gosto muito da literatura de Cormac McCarthy, um dos meus candidatos ao Nobel. No seu quase perfeito “Meridiano de Sangue”, drama shakespeariano no Velho Oeste, há este início poderoso: “Vejam a criança. O menino é pálido e magro, usa uma camisa de linho puída e esfarrapada. Atiça o fogo na copa. Lá fora estão os escuros campos arados entremeados de fiapos de neve e além deles a floresta ainda mais escura que abriga uns poucos lobos remanescentes. Sua família é tida por cortadores de lenha e carregadores de água, mas seu pai na verdade sempre foi um mestre-escola. Ele se afoga na bebida, cita poetas cujos nomes hoje estão esquecidos. O menino se agacha junto ao fogo e observa”.

Veem? Eu vejo a criança e tudo o mais. McCarthy é o Faulkner moderno (ou seria o Melville dos nossos dias? Harold Bloom, aliás, um crítico que vê aquilo que não enxergamos, indica que o Juiz Holden, assustador personagem de “Meridiano de Sangue”, seria Moby Dick e não o mais óbvio Ahab).

O “segundo livro” de “O Jogo da Amarelinha”, de Julio Cortázar, aquele cuja leitura se inicia pelo capítulo 73, ordem sugerida pelo próprio autor, tem um começo melhor do que o do “primeiro livro”, vale dizer, do que o início do primeiro capítulo: “Sim, mas quem nos curará do fogo surdo, do fogo sem cor que corre, ao anoitecer, pela rue de la Huchette, saindo dos portais carcomidos, dos pequenos vestíbulos, do fogo sem imagem que lambe as pedras e ataca os vãos das portas, como faremos para nos lavar da sua queimadura doce que persiste, que insiste em durar, aliada ao tempo e à recordação, às substâncias pegajosas que nos retêm deste lado, e que nos queimará docemente até nos calcinar?”

Philip Roth: Ou você abre mão de trepar com as outras ou o nosso caso está encerrado

O angolano Pepetela (“A Sul. O Sombreiro”): “Manuel Cerveira Pereira, o conquistador de Benguela, é um filho da puta”. Eis aí a chamada entrada “pé-na-porta”.

Estendo-me e ainda há muito mais. Adiante. Proust escreveu “Em Busca do Tempo Perdido” no século 20, mas, para mim, ele é muito mais um escritor do século 19. De qualquer modo, ele prova, com o início de “No Caminho de Swann”, que a primeira frase de um livro não precisa ser um contorcionismo de virtuosismo estilístico. O narrador começa apenas dizendo “Durante muito tempo, costumava deitar-me cedo” (evidentemente, no original tudo é mais sonoro, “Longtemps, je me suis couché de bonne heure”, pois até previsão do tempo fica elegante em francês). A partir daí, serão milhares de páginas de reminiscências, divididas em sete volumes.

Gabriel García Márquez e Philip Roth são dois mestres modernos do início perfeito. Roth vem à disputa com pelo menos dois começos. “O Teatro de Sabbath”, livro que todos devem levar para a famosa ilha deserta, inicia-se assim: “Ou você abre mão de trepar com as outras ou o nosso caso está encerrado”. E há, claro, “O Complexo de Portnoy”, livro estruturado como uma longa sessão de psicanálise do paciente Alexander Portnoy. Vejam só suas primeiras palavras ao psicanalista (vale dizer, as primeiras palavras do livro): “Ela estava tão profundamente entranhada em minha consciência que, no primeiro ano na escola, eu tinha a impressão de que todas as professoras eram minha mãe disfarçada”. Já se percebe, somente por essas linhas, que o psicanalista vai ter trabalho.

Gabriel García Márquez: O mundo era tão recente que muitas coisas careciam de nome e para mencioná-las se precisava apontar com o dedo

García Márquez comparece primeiro, claro, com “Cem anos de Solidão”: “Muitos anos depois, diante do pelotão de fuzilamento, o Coronel Aureliano Buendía havia de recordar aquela tarde remota em que seu pai o levou para conhecer o gelo. Macondo era então uma aldeia de vinte casas de barro e taquara, construídas à margem de um rio de águas diáfanas que se precipitavam por um leito de pedras polidas, brancas e enormes como ovos pré-históricos. O mundo era tão recente que muitas coisas careciam de nome e para mencioná-las se precisava apontar com o dedo”.

E há a perfeição de “O Amor nos Tempos do Cólera”, aquele bolerão latino-americano que releio todos os anos para me certificar de que há amores eternos — ao menos nos livros, bem entendido: “Era inevitável: o cheiro das amêndoas amargas lhe lembrava sempre o destino dos amores contrariados. O doutor Juvenal Urbino o sentiu logo que entrou na casa ainda mergulhada em sombras, à qual chegara acudindo a chamado de urgência para se ocupar de um caso que para ele tinha deixado de ser urgente há muitos anos. O refugiado antilhano Jeremiah de Saint-Amour, inválido de guerra, fotógrafo de crianças e seu adversário de xadrez mais compassivo, se havia posto a salvo dos tormentos da memória com uma fumigação de cianureto de ouro”.

Não nos esqueçamos de “Crônica de uma Morte Anunciada”, também do grande Gabo: “No dia em que o matariam, Santiago Nasar levantou-se às 5h30m da manhã para esperar o navio em que chegava o bispo”. Um início que ecoa, sem dúvida, no começo de “Trem Noturno Para Lisboa”, de Pascal Mercier: “O dia a partir do qual nada mais continuaria como antes na vida de Raimund Gregorius começou como outro qualquer”.

William Faulkner: Houve uma vez (eles também não poderiam ter contado isto a você) um verão de glicínias. O cheiro da glicínia se impregnou em todos os lugares (eu tinha quatorze anos na época), como se todas as primaveras ainda por vir tivessem se aglutinado naquela primavera, naquele verão

Faulkner, para mim um dos grandes do século 20, costuma ser lembrado pelo início de “O Som e a Fúria”, que não me é muito caro (e deixo de fora das minhas preferências também o começo de “O Grande Gastby”, de Scott Fitzgerald, outro que também costuma frequentar as listas alheias). Gosto bastante, porém, do início do segundo capítulo de “Absalão, Absalão!”, para mim sua obra-prima, “Foi um verão de glicínias”, que serve para que mais à frente seja dito: “Houve uma vez (eles também não poderiam ter contado isto a você) um verão de glicínias. O cheiro da glicínia se impregnou em todos os lugares (eu tinha quatorze anos na época), como se todas as primaveras ainda por vir tivessem se aglutinado naquela primavera, naquele verão: primavera e verão de toda mulher que viveu sobre o pó da terra, obrigando todas as brotações traídas e adiadas pelo tempo irrevogável a se repetirem, desabrocharem novamente”.

Há um tipo de início que me agrada especialmente, aquele em que o personagem principal se descreve ou se define. Seguindo a linha do Ismael de Herman Melville (vejam a “Carpe Diem” anterior sobre inícios de livros), existem muitas aberturas que imediatamente nos fazem querer conhecer o personagem-narrador e continuar a leitura. Günter Grass é um dos campeões da categoria, começando assim o grande “O Tambor”: “Admito: sou interno de um hospício”. Saul Bellow, que, como Grass, recebeu o Nobel de Literatura, inicia “Herzog” de modo bastante semelhante: “Se estou louco, tudo bem para mim, pensou Moses Herzog”. Na mesma linha, há “Homem Invisível”, de Ralph Ellison (“Sou um homem invisível”), e “O Filho de Mil Homens”, de Valter Hugo Mãe (“Um homem chegou aos quarenta anos e assumiu a tristeza de não ter um filho. Chamava-se Crisóstomo”). Talvez a apresentação perfeita nessa categoria seja a de “As Aventuras de Augie March”, também de Bellow: “Sou americano, nascido em Chicago — Chicago, aquela cidade sombria —, e faço as coisas do jeito que aprendi sozinho a fazer, estilo livre”. Empata, sem dúvida, com as primeiras linhas de “Eu, Cláudio”, do inglês Robert Graves: “Eu, TIBÉRIO CLÁUDIO DRUSO NERO GERMÂNICO, isto-e-aquilo…. (não quero inflingir-vos desde já todos os meus títulos), que fui outrora, e até mesmo recentemente, conhecido por meus amigos, parentes e associados como Cláudio, o Idiota, Aquele Cláudio, Cláudio, o Gago, Clau-clau-cláudio, ou no mínimo como Pobre tio Cláudio, proponho-me hoje a escrever a estranha história de minha vida”.

Günter Grass: Admito: sou interno de um hospício

Percebo que deixei de fora livros brasileiros e de não ficção. Ficam para outra hora, que esta “Carpe Diem” já vai longa. Entretanto, como prévia do futuro texto, lembro-me de “A Fazenda Africana”, memórias de Karen Blixen da sua estada na África (sim, o livro em que o filme “Entre Dois Amores” se baseou): “Eu tive uma fazenda na África, aos pés dos montes Ngong”. É de dar vontade de fazer as malas para a África, não?

Gosto de decorar esses inícios, inclusive de livros que ainda não li (o leitor inveterado é sempre um esperançoso que acredita que terá tempo de ler todos os livros do mundo). Alguns acharão que se trata de um passatempo pueril ou amalucado (admito: sou interno de um hospício…). Talvez, talvez. Mas há hobbies piores: há quem prefira ficar postando fotografias de comida no Facebook e quem goste de assistir a leilões de gado na televisão. O caso não é tão grave, não?

Bem, não cabe ao próprio doente fazer o seu diagnóstico, e talvez eu tenha exagerado com tantas transcrições. Pouco importa: “a carne é triste e, sim, já li todos os livros”; portanto, depois de tantos inícios, finalmente encerro.

As traduções mencionadas no texto são, na ordem em que nele aparecem, as seguintes.