Quando eu surtar, por favor, me avise

Quando eu surtar, por favor, me avise

Eu não devia falar ao telefone enquanto dirijo. Está na letra da lei. Acontece que o trânsito parou à minha frente. Carros congestionados, vida que segue. Aproveito o caos e ligo para um amigo, a fim de desejar “sinceras condolências” pela morte do seu cachorrinho. Fiquei sabendo do passamento do totó pelas redes sociais. Um cão com instagram era só o que faltava. Ele fica zangado. Ele sabe que eu não dou a mínima. Manda-me à merda. Não lhe tiro a razão. Se existe um sujeito grosso especialista em fina ironia, esse cara sou eu. Bate o telefone na minha cara. Dou ré no catarro. Cuspo pela janela. Às favas ele também.

O calor de agosto derrete os vestígios de humanidade que agonizam na minha mente. Parece um contrassenso, pois, apesar do aumento da temperatura média no planeta, resta frieza nos meus olhos. Quisera ser abduzido, mas, não acredito em extraterrestres. Quisera sair do próprio corpo, mas, não acredito em alma. Acreditem, hoje estou que não me aguento. Devo esboçar aquela aparência aterradora de quem está prestes a petrificar, porém, conforme eu já disse, não consigo evaporar, evadir-me da carne para enxergar o imbecil que sofre preso ao volante do carro. É a porra do engarrafamento. Preciso tomar uma. Cidade de merda. Antes não morasse, mas, sim, vivesse, num lugar tranquilo onde não houvesse malabaristas nos semáforos. Nada contra os artistas de rua. Eu daria as minhas moedas se eles sumissem. Mas, eles não somem. A minha impaciência não some.

O motorista gordo de uma van lotada de estudantes buzina atrás de mim. Ele tem pressa e muita falta de modos. Fervo. Sinto que posso sopitar a qualquer instante. Esbravejo com o desconhecido, faço isso da melhor maneira que consigo. A meninada se anima. Aumenta a algazarra. A humanidade fareja sangue. Penso em descer do carro, em fuzilá-lo com uma arma que sequer possuo. A Lei do Desarmamento faz sentido, enfim. Sigo amado até os dentes. Jesus me ama, garante o adesivo pregado no carro da frente. É preciso prosseguir, se possível, amando.

Escuto pelo rádio que um garoto de 14 esfaqueou uma garota de 13 na porta da escola, sem motivo aparente. Não foi crime. Foi um ato de insanidade. A verdade é que agora, enquanto escrevo essa joça, tem uma adolescente esticada num caixote de mogno. “Salve a Amazônia! Fora Temer!” — picharam no muro. O rapazote surtou, foi o que afirmou uma especialista em delinquência juvenil. Estou velho demais para tirar satisfações com Deus. Acontece que não param de nascer leões para que eu os mate todo santo dia. Quanta carnificina, Senhor. C’est la vie. É possível perdoar as loucuras uns dos outros? Eu não me garanto. Acho que esganaria fácil outro ser humano se tivesse uma causa justa.

Sinto-me péssimo, com os intestinos a mil. Na região onde eu moro, dizem que agosto é mês de cachorro doido. Gestos primitivos da vida moderna. Calor demais dentro da carro faz estragos no raciocínio da gente. Será que volta a chover? Será que um dia enlouqueço? Não tem cadeia nesse mundo que contenha os meus pensamentos ribombantes. O trânsito anda. O mundo para. O meu coração dispara. Preciso urgentemente de um banho, de uma massagem e de um copo de uísque, não necessariamente nessa ordem.

Manda quem pode, obedece quem tem juízo. Um fiscal de trânsito apita, acena, controla o fluxo de carros. Sinto um ódio descomunal dele, um jovem com os óculos do Stallone Cobra metido num uniforme cor-de-pequi, que pode ser o garoto de alguém que eu conheço. Por falar em juventude defendendo um trampo, meu filho acaba de se formar numa ótima faculdade da cidade de São Paulo. Fiquei feliz por ele e por ter me livrado das mensalidades. Acho que ele não volta. Acho que o passado não volta. O mundo dá tantas voltas que isso deve explicar a vertigem. Posso procurar uma psicóloga para um programa de desintoxicação, ou uma garota de programa que cursa faculdade de psicologia, ou ir beber cafezinho na casa da senhora minha mãe. Sei lá. Posso fazer um monte de coisas ou, simplesmente, ir tomar no meio do cu, se isso fizer que vocês, leitores, se sintam melhor. Vocês que me toleraram até aqui.

Sinto uma raiva acima da média. Abro a janela. Estico o dedo médio para o alto. Tenho as mãos enormes, lindas, as mãos de um violoncelista que nunca fui. Mando alguém se lascar. “Enfia essa Land Rover no rabo da sua mãe.” Será que as crianças ouviram aquilo? E se viaja alguém conhecido dentro daquele carrão importado? Essa cidade é um ovo. Estou frito. A droga do ar, enguiçado. Ora e vejam, tudo tem uma explicação. Era um motoqueiro estirado no asfalto. Fratura exposta, eu suponho. Ah… Não suporto ossos quebrados. Partem-me o coração. O resgate chega. Vai terminar tudo bem para ele. Preciso, contudo, salvar o meu dia. Não tem atadura que dê jeito. Pode ser que chova. Pode ser que meu filho volte de São Paulo. Pode ser que eu me sinta mais leve com a entrada da primavera prevista para o mês de setembro.