O Leopardo, o livro que imortalizou a Sicília

O Leopardo, o livro que imortalizou a Sicília

O escritor siciliano, que morreu em 1957, deixou uma obra-prima que obteve sucesso entre o público exigente sem deixar de ser popular. Biografia revela que tinha um amigo no Brasil, o engenheiro Guido Lajolo

“O Leopardo”, de Giu­sep­pe Tomasi di Lam­pedusa (1896-1957), é um dos mais importantes romances da Itália. Não deixa de surpreender que tenha se tornado best seller e suas frases, principalmente “se quisermos que tudo continue como está, é preciso que tudo mude”, tenham caído no linguajar popular. A prova de sua vitalidade é que no Brasil há cinco traduções do livro: a de Maurício Santana Dias (Com­panhia das Letras, 381 páginas, de 2017), a de Leonardo Codignoto (Nova Cultural, 318 páginas, de 2003), a de Marina Colasanti (Record, 300 páginas, de 2000), a de José Antonio Pinheiro Machado (L&PM, 206 páginas, de 1983) e a de Rui Cabeçadas (Difel, 220 páginas, de 1963). O filme do diretor Luchino Visconti, conde italiano, é uma adaptação tão perfeita que parece ter sido dirigida pelo “espírito” do escritor siciliano. Fica-se com a impressão de que a película contém toda a história, ainda que condensada.

Giu­sep­pe Tomasi di Lampedusa, um dos mais importantes autores do século 20

O posfácio de Maurício Santana Dias elucida parte da vida e analisa a obra e sua crítica. Há, claro, a tendência de se apresentar Giuseppe Maria Fabrizio Salvatore Stefano Vittorio Tomasi, o duque de Palma e príncipe de Lampedusa, como antifascista. Segundo “El Último Gattopardo — Vida de Giuseppe di Lampedusa” (Siruela, 242 páginas, tradução de Javier Lacruz), de David Gilmour, formado por Oxford, não é bem assim: “Nunca se opôs realmente a [Benito] Mussolini, sobretudo no princípio. De fato, foi menos antifascista do que vários de seus parentes. A precoce admiração de Giuseppe Palma [depois, Lampedusa] pelo fascismo, como a de muitos suboficiais, provinha do medo da revolução e do ressentimento contra os fracassos dos liberais. Reconhecia que os fascistas não eram inocentes, mas, ‘com todos seus excessos e seus defeitos’, ao menos queriam melhorar o país, enquanto que os liberais se deixaram levar por uma inércia viciada e autocomplacente. Ademais, acreditava que o fascismo podia ‘domesticar o bolchevismo’. (…) Grande parte de sua atitude parecia dever-se a um ‘amargo ressentimento’ contra as classes médias liberais”.

David Gilmour apresenta duas pessoas que mantiveram forte ligação com Lampedusa: o poeta Lucio Piccolo e o engenheiro Guido Lajolo. Lucio Piccolo era seu primo e um intelectual de formação enciclopédica. Um congresso literário em San Pellegrino Terme, em 1954, no qual Lucio Piccolo ganhou apresentação de Eugenio Montale (era fascinado pelo livro “Canti Barocchi”, de Piccolo), parece ter despertado o escritor que estava adormecido. Sublinhe-se que há uma família Piccolo no Brasil, parte dela dedicada à medicina em Goiânia. Guido Lajolo mudou-se para o Brasil, em 1930, e manteve correspondência com Lampedusa, que lhe informava sobre os passos de sua literatura, notadamente “O Leopardo”. Talvez tenha algum grau de parentesco com a crítica literária e escritora Marisa Lajolo, professora aposentada da Unicamp. Na edição da Companhia das Letras (página 353) há menção ao seu endereço — Rua Everlândia, 1147, São Paulo, Brasil — e a informação de que ele e Lampedusa foram prisioneiros no campo de Szombaghely durante a Primeira Guerra Mundial. Eles eram militares. Lampedusa chegou ao posto de cabo.

O aristocrata

Lampedusa era casado com a psicanalista Alexandra (ou Alessandra) Wolff, Licy, filha de um barão alemão com uma cantora lírica italiana, Alice Barbi. Ler (e, depois, escrever) era, digamos, o seu trabalho. “Uma vez passou quatro horas numa pastelaria”, em Palermo, “e leu um romance de Balzac numa sentada”. Ficou tão inebriado que escreveu para Licy, que estava em Roma: “Que talento, meu Deus! E não só de romancista, mas também de grande historiador”. David Gilmour conta “que comprar livros era sua única extravagância autêntica. Sentia-se culpado por comprar tantos e, por isso, dizia a Licy que estavam em promoção”.

Alexandra Wolff, a Licy, com o escritor Giuseppe Tomasi di Lampedusa, na década de 1930; ela era uma psicanalista consagrada e ele, um escritor refinado

O capítulo “O consolo da literatura” registra a história das aulas que Lampedusa dava para alguns jovens. Ele escreveu mais de mil páginas para explicar basicamente as literaturas inglesa e francesa. Era apaixonado por Stendhal, Dickens e Tolstói e lia Goethe, James Joyce e T. S. Eliot com prazer. Tudo indica que uma competição “saudável” com Lucio Piccolo e as lições literárias para Gioacchino Lanza — sobrinho que adotou como filho — e Francesco Orlando foram decisivas para Lampedusa perceber que já tinha cabedal suficiente para escrever um romance.

Ao amigo Guido Lajolo, Lampedusa escreveu uma carta, em 1955: “Tenho certeza matemática que não sou mais tolo [que Lucio Piccolo]. Assim, sentei-me no meu escritório e escrevi um romance”. David Gilmour frisa que suas motivações para escrever eram mais profundas. Além da decadência financeira, ele era o último de sua linhagem — como dom Fabrizio, príncipe Salina, o personagem principal de “O Leopardo”. Escrever a respeito era uma forma de resgatar parte da história de sua família e eternizá-la.

A venda da casa de campo de Santa Margherita e a destruição do palácio Lampedusa (na Segunda Guerra Mundial) abalaram Lampedusa. A reconstrução de parte da história do que lá se passou, por meio da literatura, parece ter reduzido a frequente depressão do escritor. A proximidade da velhice — com pouco mais de 50 anos parecia ter 70 anos —, sinalizando que poderia morrer, apressou-o a escrever o romance. Quando o tio Pietro Tomasi della Torretta, diplomata que havia sido perseguido por Mussolini, perguntou-lhe o que estava fazendo, Lampedusa sumarizou: “Me divirto”. Escrevia quase todos os dias, na biblioteca de sua casa ou no café Mazzara. Há indícios de que escrevia melhor em francês — dominava ao menos meia dúzia de idiomas —, mas a obra precisava ser escrita em italiano, para capturar a alma da Sicília. David Gilmour assinala que “seu italiano às vezes dá a impressão de ser uma tradução”.

Apesar da dificuldade na formulação do romance, pela falta de experiência como escritor, Lampedusa saiu-se muito bem. “As frases e as imagens são muito originais, e sua linguagem tem uma intensidade que às vezes lembra [Joseph] Conrad. O tradutor inglês de ‘O Leopardo’ disse que o romance é ‘tão cheio de sutis jogos de palavras e dotado de uma ironia tão delicada quanto grandiosa’ que acabou por considerá-lo ‘uma das prosas mais cheias de alusões da literatura desde Manzoni.”

A biografia escrita pelo inglês David Gilmour, formado por Oxford, mostra profunda conexão entre realidade e imaginação literária no romance “O Leopardo”, de Giuseppe Tomasi di Lampedusa, e indica a autonomia da arte em relação à história

Licy contou que Lampedusa pretendia que fosse “um romance histórico, ambientado na Sicília no tempo do desembarque de [Giuseppe] Garibaldi em Marsala, e baseado no seu bisavô, o astrônomo Giulio di Lampedusa”. Ele queria contar 24 horas da vida de seu bisavô, no caso dom Fabrizio, mas desistiu. Disse que não sabia como escrever como James Joyce, o do romance “Ulysses”.

Em junho, interrompeu a escritura do romance para, influenciado pelo Stendhal de “Vida de Henry Bru­lard”, escrever sua autobiografia, mas só terminou a parte da infância, publicada como “Recordações da Infância” (ou “Os Lugares da Minha Primeira Infância”, publicado com este título no Brasil no livro “O Senador e a Sereia”). Logo retomou o romance.

O jovem Francesco Orlando percebeu uma mudança em Lampedusa quando começou a escrever “O Leopardo”. Ele retomou seu “ar aristocrático”. “‘O Leopardo’ havia se convertido numa projeção de seu eu.” Parece que queria ser como dom Fabrizio — aristocrata e dotado de humor, de irreverência. Nos momentos de folga, ia ao cinema, ouvia música (era um crítico corrosivo de óperas; sugeria que a ópera havia contribuído para o senso melodramático dos italianos) e lia. Ao escrever seu romance, leu “Guerra e Paz”, de Liev Tolstói, ao qual considerava gênio, e vários documentos sobre a presença de Garibaldi na Sicília e deu aulas sobre a literatura de Graham Greene, Saki, Henry James, T. S. Eliot, Rabelais, Calvin, Racine, Molière, Gide, Joyce, Heine, Goethe e Shakespeare (que, como Harold Bloom, considerava como o suprassumo da cultura ocidental).

“O Leopardo” surgiu inicialmente como um projeto secreto. Depois de escrever e reescrever várias vezes, deu os originais para Francesco Orlando ler e, em seguida, leu trechos com (e para) Gioacchino. Francesco Orlando datilografou o manuscrito.

Recusa das editoras

Em maio de 1956, Lucio Piccolo envia quatro capítulos ao conde Federico Federici, editor da Monda­do­ri. A editora decide não publicá-lo, com uma desculpa esfarrapada. Na ver­dade, o escritor siciliano Elio Vit­torini, conselheiro da editora e integrante da esquerda, avaliou o romance como “antiquado” e “reacionário”. Lampedusa retomou a obra e acrescentou novas histórias, notadamente sobre o palácio de Donnafu­ga­ta. Ele ditava e Francesco Orlando da­tilografava. Ao amigo Guido La­jo­lo, que seguia morando no Brasil, o es­critor se dizia satisfeito com os “mé­ritos do livro”. Explicou que o romance era “irônico, amargo” e não lhe faltava “malícia”. Advertia que era necessário “lê-lo com grande atenção porque havia sopesado cada palavra e todos os episódios têm um sentido oculto”. Informou que, além das “recordações pessoais”, a descrição de alguns lugares era “absolutamente autêntica”.

À espera de editora para “O Leopardo”, Lampedusa escreve contos, como “A felicidade e a lei” e “O senador e a sereia” — que figuram no livro “O Senador e a Sereia”, de Lampedusa, Editora L&PM, 141 páginas, tradução de José Antonio Pinheiro Machado. Depois, em 1957, escreve o primeiro capítulo do romance “Os Gatinhos Cegos”. No mesmo ano, acrescenta capítulos a “O Leopardo” e faz uma revisão completa dos originais. O livreiro Fausto Flaccovio envia o romance mais uma vez para Elio Vittorini, diretor da editora Einaudi. E um analisando da psicanalista Licy manda uma cópia para a gente literária Elena Croce, filha do filósofo Benedetto Croce.

Elio Vittorini, “um profeta do neorrealismo e da experimentação”, rejeitou “O Leopardo” pela segunda vez, por considerar o romance como “reacionário” e “regressivo”. O escritor não soube entender que o que parecia defeito, o caráter antiquado da história — dada a decadência da nobreza e a ascensão da burguesia, com aquela precisando desta, pelo dinheiro, e esta precisando daquela, pelo caráter aristocrático —, era, na verdade, virtude. Eram forma e conteúdo em profunda conexão. Até o estilo ensaístico, hoje visto como moderno, chocou o marxista Elio Vittorini. O pior crítico não é o que critica duramente uma obra, e sim o que não a compreende.

David Gilmour estranha o fato de não terem enviado o livro para o poeta Eugenio Montale, que, mais tarde, se tornou um dos primeiros grandes defensores do trabalho de Lampedusa.

Há duas cópias de “O Leopardo” — uma manuscrita e uma datilografada. “As diferenças entre as duas versões têm um certo interesse erudito, mas não são realmente importantes”, sustenta o biógrafo.

Morte do escritor

Com pouco menos de 60 anos, Lampedusa era um homem doente (enfisema, bronquite, dores reumáticas, depressão). “Não luto mais”, dis­se a Francesco Orlando. Mas estava tran­quilo. Gioacchino acredita que “‘O Leopardo’ preparou-o para uma boa morte”. O romance representou “uma reconciliação entre a vida e a morte”. David Gilmour sugere que o livro “proporcionou-lhe um propósito à sua existência e, portanto, uma razão para retardar seu final. A tragédia de Lampedusa foi a coincidência de sua decadência física com seu breve período de criatividade artística”.

No final de abril de 1957, Lampedusa começou a cuspir sangue. Era um câncer no pulmão direito que acabou transformando-se em metástase. Mesmo muito doente, o escritor leu a carta na qual Elio Vittorini rechaçava seu romance como “antiquado e desequilibrado”.

Giu­sep­pe Tomasi di Lam­pedusa deixou uma obra-prima que obteve sucesso entre o público exigente sem deixar de ser popular

Ao perceber que ia morrer, Lampedusa escreveu cartas para sua mulher e para Gioacchino. Na carta ao filho adotivo, disse: “Gostaria que publicassem o meu romance, mas não às expensas da família”. No dia 23 de julho de 1957, sua cunhada Olga-Lolette o encontra morto. Tinha 60 anos.

No início de março de 1958, Giorgio Giargia telefona para Licy e informa que a editora Feltrinelli (cujo editor era ligado ao guerrilheiro brasileiro Carlos Marighella) havia decidido publicar “O Leopardo”. O escritor Giorgio Bassani, seguindo indicação de Elena Croce, havia lido e apreciado o romance: “Desde a primeira página, me dei conta de que me encontrava ante a obra de um verdadeiro escritor. Ao avançar, estava convencido que o verdadeiro escritor também era um verdadeiro poeta”.

Ao terminar a leitura do romance, Giorgio Bassani perguntou a Elena Croce quem era seu autor. Ela disse que não sabia, mas “que imaginava que havia sido escrito por alguma solteirona siciliana”. Ao conversar com a viúva Licy, Giorgio Bassani disse que a obra era muito boa, mas havia um problema com o final. Então, ela informou que havia um capítulo sobre um baile.

Na pressa de publicar o romance, Licy não negociou os direitos autorais de maneira realista. “O romance que estava a ponto de converter-se no primeiro best seller da história da literatura italiana aportou escassos benefícios para a família do autor.” Giorgio Bassani mais uma vez perguntou a Licy se não havia mais partes “perdidas” do romance e Gioacchino informou que estava de posse do manuscrito. Ao folheá-lo, o escritor-editor descobriu que havia mais um capítulo, “As férias do padre Pirrone”.

Licy vetou a inserção do capítulo sobre o padre Pirrone no romance, mas Giorgio Bassani acabou incluindo-o. Outro problema da Feltrinelli era saber se publicava a cópia datilografada ou a manuscrita, ou uma combinação dos dois textos. O editor e sua assistente decidiram pela publicação de “uma síntese”.

A primeira edição de “O Leopardo” foi publicada em novembro de 1958, em Milão. “Era um novela excepcional, escreveu Bassani no prólogo, uma dessas obras que requeriam toda uma vida de preparação”, anota David Gilmour. Em julho de 1959, o romance ganhou o Strega, prêmio de narrativa mais importante da Itália. Até março de 1960, foram publicadas 52 edições.

Quem é quem

Dom Fabrizio “é” Lampedusa? Licy dizia que o nobre “não era um retrato autobiográfico de seu marido”. Os personagens eram imaginados, frisava, exceto dom Fabrizio, inspirado no bisavô do escritor, Giulio, e nas suas filhas, baseadas nas tias do autor de “O Leopardo”. Numa carta a Guido Lajolo, Lampedusa revelou que dom Fabrizio era baseado no bisavô, mas ponderou: “Os amigos que leram o romance dizem que o Príncipe de Salina se parece, malditamente, comigo”. Noutra carta, enfatizou: “No fundo, o protagonista sou eu mesmo, e o personagem chamado Tancredi é meu filho adotivo”. Guido Lajolo recebeu uma terceira carta mais contundente: “Dom Fabrizio expressa completamente minhas ideias, e Tancredi, seu sobrinho, é o retrato de Giò [Gioacchino Lanza], no que diz respeito ao seu aspecto e aos seus costumes; e, quanto à moral, Giò, afortunadamente, é muito melhor do que ele”.

O Leopardo, de Giu­sep­pe Tomasi di Lampedusa (Tradução de Maurício Santana Dias, Com­panhia das Letras, 381 páginas)

David Gilmour afirma que a explicação de Lampedusa é mais apropriada do que a de Licy, mas sugere que ele também exagera. “Dom Fabrizio e Tancredi devem muito a duas figuras histórias, o príncipe Giulio di Lampedusa e seu sobrinho Corrado Valguarnera di Niscemi. Não são retratos de nenhuma dessas pessoas, porque o autor não sabia o suficiente do caráter e da personalidade dos parentes, mas parte de seus atos e das circunstâncias históricas que os guiaram são as mesmas. Os problemas de dom Fabrizio podem ter sido os mesmos que atormentaram Lampedusa, mas seus problemas políticos, seus interesses e suas propriedades pertencem ao príncipe Giulio. O encanto de Tancredi e seu senso de humor eram os de Gioacchino, e a relação que tinha com dom Fabrizio se parecia à existente entre o escritor e seu filho adotivo: quando Lampedusa relata a incapacidade de dom Fabrizio de enfadar-se com Tancredi, ou a impossibilidade de se aborrecer em sua companhia, está descrevendo de fato sua própria atitude com Gioacchino. Mas as condições da época que inspiraram o comportamento de Tancredi são as que dizem respeito a Corrado Valguarnera e seus amigos”, afirma o biógrafo.

Personagens literárias quase sempre resultam de compósitos, de junção de características de duas ou mais pessoas para formar um ou mais indivíduos (personagens). Por isso, David Gilmour postula que “Tancredi não é Brancaccio [amigo de Corrado Valguarnera) nem Valguarnera. Era, sim, uma mescla de todos, com o acréscimo de outras características inventadas por Lampedusa. A composição de dom Fabrizio é mais complicada. Há similitudes óbvias entre ele e o príncipe Giulio, especialmente sua obsessão pela astronomia, mas parece que o bisavô do autor foi menos autocrata que o príncipe de Salina. (…) Dom Fabrizio é mais autobiográfico que inventado, mas é um personagem autobiográfico convertido noutra pessoa: a pessoa que o escritor queria ter sido. Lampedusa não tinha a segurança arrogante de Salina, nem sua sensualidade manifesta, nem sua superioridade sobre os demais: a própria personalidade do autor, em grande parte moldada por sua mãe [Beatrice], e a decadência de sua família, iniciada pelo príncipe Giulio, fizeram dele uma pessoa muito diferente. Lampedusa compartilhava as ideias e opiniões do Leopardo, tinha muitos de seus pensamentos íntimos e de seus sentimentos secretos, mas seu comportamento era o de um animal mais manso”. Lampedusa era, sobretudo, um homem tímido. Quanto à obra de arte, resultado do trabalho de imaginação literária, não se trata de uma reprodução da realidade. A arte guarda autonomia em relação ao real, mas, por vezes, potencializa sua compreensão. Mimese não é cópia.

Assim como Lampedusa, dom Fabrizio, um nobre dos mais charmosos e cultos — o que torna a decadência da nobreza ainda mais bela e lamentável —, intuía a extinção de sua classe, mas nada fazia para evitá-la. David Gilmour ressalva que “não é um reacionário”, pois “não faz do passado um paraíso”. “Desagradam-lhe a cobiça e a falta de idealismo dos ‘progressistas’ liberais, mas não é um defensor da velha ordem nem da monarquia borbonica [de Bourbon]. (…) Como Lampedusa, dom Fabrizio critica o passado, ainda que ele mesmo faça parte dele em tal medida que não tem ilusão sobre o futuro”. O nobre admite que pertence a uma geração perdida e que sobrevive, desgostoso, em (e entre) dois tempos — o velho e o novo.

Alain Delon e Claudia Cardinale no filme “O Leopardo” dirigido por Luchino Visconti, em 1963

Dom Fabrizio é um homem bonito e inteligente — do tipo que se admira e respeita. Mas é, como Lampedusa, um homem triste. David Gilmour assinala que “a causa de sua tristeza” é menos a culpa e mais a consciência “do caráter transitório dos sentimentos. O amor não dura para sempre — ‘chamas um ano, cinzas trinta’ — e outros sentimentos ainda duram menos”. Num mundo que muda rápido, reduzindo a importância do que é essencial, porque nem se sabe mais o que é essencial, o príncipe de Salina apega-se “às velhas coisas familiares”, como Donnafugata. De acordo com o biógrafo, “Donnafugata é amada menos por si mesma que pela ‘sensação de tradição e perpetuidade expressada em pedra e água, do tempo congelado’. As pessoas, os objetos, as instituições que não lhe preocupavam antes se tornam importantes para ele na medida que desaparecem”. Paradoxalmente, embora seja uma figura do passado, que está desaparecendo nos novos tempos, dom Fabrizio é moderno e perceptivo.

“O Leopardo”, ainda que trate da Sicília e da Itália, é, na concepção de David Gilmour, “um romance contemporâneo sobre os problemas e as angústias do protagonista, os problemas de um ser marginal que perdeu seu caminho e não sabe qual direção tomar”. A história “também é universal — ao expressar a alienação e o desassossego de um indivíduo que vaga sem propósito algum por um mundo sem valores fixos”. O crítico Massimo Ganci comparou a “Sicília irredimível” de “O Leopardo” com “a aridez do homem moderno… suspenso no vazio existente entre um passado definitivamente morto, ainda que evocado em chave de nostalgia, e um futuro ainda mais cheio de alienação”. O biógrafo acrescenta que “a morte ou o esquecimento proporciona o único alívio a este vagabundeio interminável por uma paisagem não mapeada. (…) A morte está presente na primeira página do livro e impregna o restante do romance”. Fulco di Verdura, primo de Lampedusa, disse: “A morte está como em sua casa na Sicília”.

Um dos aspectos mais destacados do romance é a união entre o nobre decadente Tancredi — feito por Alain Delon no cinema — e a bela, rica e nada classuda Angelica Sedàra (Claudia Cardinale, belíssima, no filme de Visconti). Apesar da juventude e da beleza de ambos, trata-se de um casamento de conveniência. A burguesa Angelica Sedàra, filha de um grosseirão rico, é a salvação do nobre Tancredi. As classes fazem um intercâmbio e o amor, nada nobre, se torna um negócio. Dom Fabrizio, irritado, diz: “Nós fomos os Gattopardos, os leões, os que nos substituirão serão os chacais, as hienas”.

Lampedusa e dom Fabrizio eram implacáveis com os defeitos de sua própria classe social, a nobreza

Dom Fabrizio é o principal personagem de “O Leopardo”, mas a frase mais citada do romance é de Tancredi, seu sobrinho: “Se não nos envolvermos nisso, os outros implantam a República [trata-se da unificação italiana, que acabou se dando sob domínio na monarquia]. Se quisermos que tudo continue como está, é preciso que tudo mude. Fui claro?”

David Gilmour diz que a frase tem sido mal interpretada. Muitos apostam que reflete o ponto de vista de Giuseppe Tomasi de Lampedusa, seria sua filosofia. Mas frise-se que é, tão logo dita, rechaçada por dom Fabrizio. “Certamente”, afirma o biógrafo, “Lampedusa acreditava que o passado estava composto de intermináveis mudanças superficiais e de um recorrente uso de distintas etiquetas para o mesmo objetivo. Mas também sabia, como Salina, que a época do Risorgimento era distinta de suas predecessoras. Em si mesma não supunha uma grande mudança, mas anunciava mudanças reais (na estrutura social e na economia) que paradoxalmente não conseguiram alterar muitas coisas ou solucionar muitos problemas da ilha”. A modernidade não havia reduzido a violência e a corrupção política em Palermo, capital da Sicília. O escritor Leonardo Sciascia, antes um crítico severo de Lampedusa, pela sua interpretação corrosiva da Sicília, mais tarde concordou com o criador de “O Leopardo”. A Sicília não era a oitava maravilha da Itália nem do mundo. Ao mostrá-la, de maneira presente e, ao mesmo tempo, distanciada, longe de contribuir para “destruí-la”, Lampedusa ampliou sua compreensão.

Ao contrário do que havia entendido Elio Vittorini, que não soube ler o romance, Lampedusa, com sua crítica ao presente e pessimismo em relação ao futuro, não era um reacionário. Além de um grande escritor, era um crítico social que não compactuava com nenhum poder, seja político, empresarial ou religioso. “Lampedusa era um monarquista capaz de criticar a monarquia.” Ele, como certamente dom Fabrizio, era um aristocrata que “podia ser implacável com os defeitos de sua própria classe”.

O Risorgimento não era, para Lampedusa, o acontecimento sagrado da história italiana. O Risorgimento siciliano era, na sua concepção, “pouco mais que uma mudança de dinastia e a substituição de uma classe por outra”. Seus compatriotas sicilianos não queriam uma “mudança real”.

O escritor “compartilhava a crença de Gobetti de que ‘o fracasso do Risorgimento, ao não obter o apoio das massas e não produzir uma classe dominante responsável, havia tornado quase inevitável o fascismo”.

Eugenio Montale, Aragon e Forster contribuíram para consolidar “O Leopardo” como obra-prima

“O Leopardo”, sustenta David Gilmour, é o livro que mais provocou e provoca polêmica na Itália. O livro persiste despertando paixões e discussões acaloradas. A primeira resenha sobre o romance, escrita por Carlo Bo, em “La Stampa”, de novembro de 1959, era francamente elogiosa.

O poeta Eugenio Montale “foi um dos primeiros a reconhecer os méritos de ‘O Leopardo’”. Lampedusa era um escritor nato. Geno Pampaloni soube perceber como o escritor captou com mestria a transição de épocas e classes sociais. Luigi Barzini corroborou.

Gioacchino Lanza (filho adotivo de Lampedusa e modelo para o personagem Tancredi de “O Leopardo”), Lucio Piccolo, poeta elogiado por Eugenio Montale, e Giuseppe Tomasi de Lampedusa; os dois últimos eram primos e mantinham discussões eruditas sobre vários assuntos, notadamente literatura

Se a crítica mais categorizada, a que valoriza aspectos literários, incluiu o romance no cânone da literatura da Itália, os críticos de esquerda, os católicos e os apologistas sicilianos, mais do que interpretar a obra, decidiram atacá-la. A prova de sua vitalidade é que, próximo de completar 60 anos, em 1958, o romance persiste firme, sólido como uma rocha.

Enquanto os marxistas italianos apontavam “O Leopardo” como um romance “reacionário” e “retardatário”, o escritor francês Louis Aragon, comunista de carteirinha, leu-o mais cuidadosamente. Ele o considerava “um dos grandes romances deste século [o 20], um dos grandes romances de todos os tempos, e talvez… o único romance italiano”. O marxista do país de Stendhal frisou, com todas as letras, que “era um insensatez qualificá-lo como um livro de direita”. O escritor italiano Alberto Moravia escreveu que a obra expressava “as ideias e a concepção de vida” da classe dominante. Pelo contrário, Louis Aragon “via ‘O Leopardo’ como uma crítica de Lampedusa à sua própria classe que não só lhe parecia ‘desapiedada’ como também de ‘esquerda’”. A esquerda italiana quase infartou.

Publicado na França em 1959, “O Leopardo” teve “uma acolhida entusiasmada”. Em seguida, saiu na Inglaterra, com ampla exaltação da crítica especializada. Eles notaram a influência da prosa de Stendhal. E. M. Forster escreveu que o livro, que avaliou como “nobre”, não era um “romance histórico”, e sim “um romance que passará à história”. Os franceses mencionaram tanto Stendhal quanto Proust. “As resenhas francesas e britânicas, especialmente as de Aragon e Forster, tiveram um efeito moderador sobre os críticos italianos.” O escritor siciliano Leonardo Sciascia, que havia sido duro com o livro, retratou-se publicamente.

Os nobres sicilianos não apreciaram “O Leopardo”, sem entender, por certo, que o romance fez mais por eles do que a própria história: tornou-os mais interessantes do que, possivelmente, eram. Eles ficaram especialmente “horrorizados com os personagens de Tancredi e Angelica”. Eram, por assim dizer, excessivamente despudorados e, devido o casamento por interesse evidente, sem nuances. De fato, há certa vulgaridade na nobreza, ao querer o dinheiro dos burgueses, e há certa vulgaridade da burguesia ao tentar absorver, pelo casamento, a classe dos nobres.

O Leopardo é um clássico porque não se tornou servo das modas literárias

Que um romance de alta qualidade, sofisticado, tão stendhaliano quanto proustiano, tenha obtido sucesso literário e comercial não deixa de ser uma grata surpresa. “Vinte anos depois de sua publicação”, informa David Gilmour, “O Leopardo” havia vendido cerca de 1 milhão de exemplares, com 121 edições e havia sido traduzido para 23 idiomas.

Em 1985, uma enquete de um jornal italiano concluiu que era o romance “mais amado, assim como o mais importante” do século 20.

“O Leopardo”, postula David Gilmour, “tem envelhecido melhor do que seus detratores, e são os próprios neorrealistas e experimentalistas os que agora parecem superados. A razão principal do êxito da obra estriba, em última instância, em sua atemporalidade. Não é um livro de uma determinada época ou de uma moda, nem se apoia em estruturas linguísticas, ou de outro tipo, desta ou de outra era. ‘O Leopardo’ é um clássico porque não leva em conta as manias [modas] de uma geração de escritores e se concentrou em preocupações eternas. Lampedusa disse uma vez que Londres nunca morreria porque Dickens a havia tornado imortal e, para muita gente, ele fez o mesmo pela Sicília”.

A obra permanece viva porque Lampedusa “escreveu sobre os problemas essenciais da condição humana”, escreve David Gilmour.