Calles de papel e tinta: um passeio pelas livrarias de Buenos Aires

Calles de papel e tinta: um passeio pelas livrarias de Buenos Aires

As livrarias de Buenos Aires resistem ao tempo e às modernidades, e dão mostras de que o livro impresso não deve morrer tão cedo

Suipacha, 521. Na vitrine, três grandes retratos de Jorge Luis Borges indicam que era ali que o escritor passava muitas de suas tardes, inclusive a última. Um dos retratos faz questão de afirmar isso. Mostra Borges já velhinho passeando pelos corredores, e na legenda lê-se que aquele foi o último retrato do célebre autor argentino. Santa Fe, 1860. O antigo teatro passou por uma grande reforma e se tornou um dos principais pontos turísticos da cidade. Pelos amplos salões e galerias onde outrora desfilavam amantes da ópera, agora tropeçam turistas, ávidos por comprar e tirar selfies. Honduras, 5574. A poucas quadras de uma das praças mais boêmias de Palermo, os móveis escuros e o ambiente silencioso fazem da loja discreta quase um templo. Santos Dumont, esquina com Charlone. Longe dos lugares mais turísticos, o edifício visto de fora se assemelha a um forte. Uma robustez austera de muros de tijolinhos visíveis, sem janelas, sem vitrines. É um dos novos points dos intelectuais da cidade.

As livrarias de Buenos Aires não precisam de alguém para contar suas histórias: elas precisam ser descobertas e, uma vez descobertas, falam por si mesmas. Uma das poucas cidades do mundo onde as livrarias são parte do apelo turístico, Buenos Aires chega à era digital sem sofrer, sequer remotamente, a ameaça de ter seus livros trocados por e-books. Pelo contrário: é crescente na cidade das livrarias um movimento de novos livreiros que se somam aos já tradicionais para que o império do papel prossiga ainda por muito tempo. Segundo o estudo “El Mercado de Medios de Latinoamérica”, a Argentina lidera o ranking de consumo de revistas, jornais e livros impressos, mas fica quase na lanterna quando se trata do aumento de dispositivos para leitura digital, como tablets e e-readers. Apesar de serem dados de 2015, referentes ao ano anterior, é possível observar que o e-book não aconteceu de fato.

É uma questão tanto cultural como econômica. A Argentina pode ter uma das taxas de alfabetização mais altas da região, mas o acesso à tecnologia não tem sido no mesmo nível. “Na Argentina ainda vivemos uma ‘infância’ em termos de livros eletrônicos. Sem dúvida, a resposta é a falta de um player forte como a Amazon, que ofereça uma quantidade importante de títulos e um sistema de leitura fácil”, diz o jornalista especializado em tecnologia Tomás Balmaceda. Não é que não haja livros digitais; eles existem, mas ainda de maneira tímida. Ele cita a BajaLibros, que possui um catálogo razoável e funciona em streaming, como uma Netflix dos e-books. Mas o jornalista não vê meios de o livro de papel ser devorado pela indústria digital.

Tomás não está sozinho nesta análise. As pessoas ouvidas para esta matéria foram unânimes em dizer que a tecnologia tem a praticidade como atrativo, mas não possui o mesmo apelo que o velho e bom livro de papel. É bom que se frise que há um exagero, tipicamente argentino, em uma afirmação a respeito dessa paixão pelos livros: é um mito a história de que há mais livrarias em Buenos Aires que no Brasil inteiro. Exageros à parte, o fato é que os nossos vizinhos ganham em número de livros lidos por cada habitante em um ano — são quatro a um para eles — e em número de livrarias por habitante: são 25 lojas para cada 100 mil pessoas, um recorde no mundo todo. Para entender como nossos vizinhos conseguem, mesmo com uma inflação de 41% no último ano, prosseguir com o mercado editorial praticamente intacto, percorremos as principais livrarias do país e conhecemos algumas das novas tendências que estão ajudando a salvar este mercado.

A mercearia e o supermercado

Librería Alberto Casares: onde Jorge Luis Borges passou a última tarde de sua vida

Um dos símbolos de Buenos Aires, a Librería Alberto Casares é quase uma metáfora da cidade, que se orgulha de se exibir velha, porém cheia de histórias. Conhecida informalmente como “a livraria de Borges”, a loja pequena da pacata rua Suipacha, no Centro, existe há 40 anos. Além de Jorge Luis Borges, exibido em enormes cartazes na vitrine, o local tem na figura do dono Alberto Casares seu principal atrativo. Simpático, o octogenário senhor conta histórias sobre a loja, que já atendeu em outro local, na intersecção das ruas Arenales e Callao. Ele conta que Bioy Casares e Jorge Luis Borges eram clientes assíduos, e que este último passou a última tarde de sua vida procurando alguns livros nas suas estantes. O livreiro explica que os argentinos leem mais por uma questão histórica. “Desde a época da independência, a elite de Buenos Aires se pretendia europeia, logo comprava muitos livros. Era costume que os dotes das noivas na época incluíssem uma grande biblioteca vinda da Europa”, explica ele. “E com isso”, prossegue, “criou-se uma cultura para as artes; não só a literatura, mas para os quadros, o teatro, a ópera”.

Casares é crítico em relação ao mercado editorial que visa o lucro pelo lucro. “Fazem muitos livros em sequência, o mesmo autor, a mesma história, só mudam os nomes. Tem que vender, então esgotam o escritor”. Ele também tem ressalvas quanto às grandes cadeias de livrarias, que ele chama de “supermercados de livros”. “Não têm alma, não possuem livreiros que conheçam bem os livros, que possam sentar e conversar com as pessoas sobre seus livros preferidos”, diz ele. E se no passado a elite econômica ajudou a estabelecer uma cultura para os livros, hoje ele não acredita que seja assim: “A elite de hoje é formada por artistas de TV e jogadores de futebol. Eu duvido muito que Maradona tenha uma livraria em casa”, diz, às gargalhadas. Se a livraria de Alberto Casares prima por tesouros antigos para leitores assíduos, a livraria El Ateneo Grand Splendid é exatamente o oposto.

El Ateneo Grand Splendid: um dos símbolos de Buenos Aires e considerada uma das mais belas livrarias do mundo

Grande e suntuosa, a loja figura hoje como um dos grandes cartões postais de Buenos Aires. A livraria funciona no salão do que foi um dos maiores teatros de Buenos Aires. Dos afrescos no teto aos camarotes, vários detalhes foram conservados, como a cortina que separa o salão do palco principal, hoje convertido em um café. Por frequentar as listas de livrarias mais bonitas do mundo em jornais e sites especializados, o local recebe a visita de sete mil pessoas por semana, segundo o gerente do local, Juan Pablo Marciani. Ele diz que o apelo da livraria, além da beleza, é parte do que a própria cidade oferece: “Os livros em Buenos Aires são como o tango”, explica. E o que explicaria esse apelo do livro de papel? “A cultura do papel é muito importante para nós. E não ter acesso a meios digitais como tablets ou livros eletrônicos fazem as livrarias muito necessárias.” Mas ele reconhece que alguns de seus clientes vão ao local mais para conhecer — e tirar uma foto — do que para procurar um título específico. O que para ele é ótimo, pois “Que outra cidade do mundo tem uma livraria entre suas atrações mais procuradas?”.

Eterna resistência

Na contramão do frenesi turístico, pequenas livrarias resistem e conseguem avançar ano a ano, mesmo em meio a um mercado que mal consegue fechar no azul. A Eterna Cadencia, situada em Palermo, bairro mais hype de Buenos Aires, é uma loja austera e discreta, mas tem como atrativo principal o fato de ser uma loja para poucos. As paredes abarrotadas de títulos exibem títulos escolhidos com minúcia para um público seleto, mais exigente. Um dos livreiros, Gustavo Ruiz, é taxativo: “Não somos um ponto turístico, as pessoas não vêm aqui porque está na moda. Nós até temos best-sellers, mas fazemos questão de escondê-los nos fundos”. A loja, que existe desde 2008, possui um selo editorial próprio. E não planeja entrar no mercado do livro digital por enquanto. Outra livraria com o mesmo apelo — ou falta dele, como preferirem — é a Libros del Pasaje. São lugares silenciosos, contemplativos. Não há espaço para a pressa ali, muito menos para uma selfie.

Eterna Cadencia: títulos escolhidos com minúcia para um público seleto

Uma onda que tem gerado um burburinho entre amantes dos livros locais, e alguns turistas, é a das livrarias “secretas”. Na verdade não há tanto segredo assim, a não ser o prazer de se descobrir um local que outras pessoas ainda não conhecem. A Falena, por exemplo, fica numa rua pra lá de pacata no bairro da Chacarita. E é possível passar por ali sem jamais imaginar que o muro de tijolos aparentes esconda uma livraria. Se não fosse pelo letreiro discreto, a porta do local sequer seria vista. E é preciso tocar a campainha para adentrar a livraria e adega de Marcela Giscafré. Com livros escolhidos a dedo nos catálogos das editoras, a Falena tem a pretensão de ser um local para amantes das artes em geral. E é um local exclusivo. Marcela ri da fama de confraria secreta que sua loja, aberta há dez meses, ganhou. “É só tocar a campainha. Nós não temos vitrine, mas é uma livraria normal. Todo mundo é bem-vindo aqui”, diz.

Librería Falena: uma das livrarias “secretas” de Buenos Aires

Matemática por formação, Marcela trocou os negócios que tocava com a família pelo sonho de ser uma livreira. “‘É preciso se lançar’, diz ela, ‘eu tive muito medo no começo, mas não há como voltar atrás’.” Ela acredita que seu espaço representa uma resistência ao mercado hegemônico, mas não de maneira intencional. Há outras livrarias que estão sendo descobertas aos poucos pelo público, e algumas delas atendem somente com hora previamente marcada, por telefone ou pela internet. Elas possuem em comum o fato de os títulos serem escolhidos com base no gosto do livreiro: nada de “os 10 mais vendidos” ou muitos exemplares da mesma obra. E cada uma, a seu modo, investe em um segmento. A Los Libros del Vendaval vende livros-álbum; a Mi Casa Librería Atípica é especializada em poesia e nova ficção e a Gould tem um vasto acervo de livros de arte.

O mercado de livrarias de Buenos Aires é um mar onde convivem bem peixes e tubarões. Um traço interessante são as livrarias segmentadas. Uma lojinha minúscula numa galeria da Santa Fé possui apenas livros em francês; na Avenida de Mayo, uma loja possui somente literatura de esquerda; há inúmeras lojas apenas de livros infantis. Até os selos que só existem na internet estão investindo em filões.

A julgar pelo empenho de seus muitos guardiões, o objeto livro terá uma longa sobrevida em Buenos Aires.

Onde Ir:

Librería Alberto Casares
Endereço: Suipacha 521, San Nicolás

El Ateneo Grand Splendid
Av. Santa Fe 1860, Recoleta

Eterna Cadencia
Honduras 5574, Palermo

Librería Falena
Charlone 201, esq. Santos Dumont, Chacarita