Estenda um tapete vermelho para o amor entrar

Estenda um tapete vermelho para o amor entrar

Morava numa casa modesta. Número seis da Amargura com a Redenção. Criara o hábito de receber as visitas estendendo-lhes um tapete vermelho na passarela da entrada. Os visitantes ficavam intrigados e riam quando ele pedia para que esperassem só mais um pouquinho até que ele abrisse o portão rangente. Então, mandava a cadela parar de latir e aparecia com o felpudo tapete enfiado no sovaco: “Que bom que vocês vieram. Pouca gente visita velho hoje em dia”, dizia enquanto desenrolava o tapete sobre o passeio. Cinco metros de tapeçaria; setenta de idade. A cadela, não. A cadela era bem mais jovem e parecia ter uma vida inteira pela frente, a não ser que fosse acometida por um raio ou atropelada pelo caminhão de lixo. Todo cuidado era pouco. Ela ansiava pela rua como os homens anseiam pelo céu.

Até onde sei, ele era bancário. Sofria de insônia. Pulava de montanhas. Teve um filho. Perdeu um rim. A esposa foi pro beleléu ainda nova, acometida, em plena flor da idade, por uma espécie rara e espinhosa de tumor antropofágico, estranho, que carcomeu suas entranhas antes mesmo que ela conhecesse Paris. Também não posso morrer sem conhecer Paris. Mas o câmbio anda escandaloso. Por falar em mercado financeiro, seu único filho formou-se em Economia e mudou de mala-e-cuia para a cidade de São Paulo, a fim de trabalhar como corretor na Bolsa de Valores.

O rapaz tinha tudo para enlouquecer em pouco tempo, mas, aguentou firme o batidão e acabou se acostumando com toda aquela loucura. Mais que isso, afeiçoou-se ao dinheiro numa proporção acima da média. Ganhou tanta grana para si e para os outros que daria pra encher o meu, o seu, o dele, os nossos, o cu de uma cidade inteira do tamanho de Santa Cruz de la Sierra. Por sinal, cheirou coca, tomou Pepsi, embebedou-se com Cuspe, tragou os famosos Jeronimo’s (aqueles feitos à mão para quem não tem pressa nenhuma de morrer) e, por fim, acabou viciado em adrenalina. Aos trinta, teve a primeira angina. E a primeira a gente nunca esquece, certo? É como se um elefante fizesse um plié sobre o seu tórax. Meteram três stents tristes nas suas coronárias e depositaram uma vultosa comissão na conta corrente do doutor Abdelmassih, o médico do coração. Soube-se mais tarde, pelos jornais, que Abdelmassih, danadinho, tinha a mania feia de comer o coração dos pacientes.

Portanto, o viúvo morava só naquele casebre. Achava que a solidão lhe caía bem. Nunca mais se casou. Depois que se aposentou, entrou numa onda de escrever crônicas para um jornaleco que circulava no bairro. Decidiu que seria um escritor. Especializou-se em histórias tristes. Achava a humanidade demasiadamente triste. Inscreveu-se numa associação de escribas da qual quase ninguém tinha ouvido falar. Mais da metade dos associados era surda ou tinha aparelhinhos dependurados nos pavilhões auditivos. Participou de saraus. Instruiu-se em cursos e oficinas literárias para aprender como nascer com talento nato para a literatura. Começou a escrever tão bonitinho, mas, tão bonitinho, que pensou em pleitear a imortalidade, com direito a uma cadeira elétrica na academia de letras do condado, caso escapasse de uma gravíssima infecção urinária que o levou a contar piadas para enfermeiras-sem-calcinha durante os quinze dias que esteve internado numa uma unidade de terapia intensiva. Enquanto ele perdia um dos rins, eu perdia o senso do ridículo ao escrever esse parágrafo.

A solidão nos ensina a enxergar melhor as coisas. Por causa do isolamento, a casa ficava entregue aos seus devaneios literários e aos latidos da cadelinha que enterrava meias no jardim. Embora estivesse mais próximo da morte do que o pequeno canídeo, sofria, bestamente, imaginando o que seria dele quando o bichinho desencarnasse. Adorava picanha mal passada. Acreditava que cães possuíam almas. Apreciava conversar com as pessoas. Portanto, começou a adular os visitantes: irmãos, sobrinhos, ex-colegas do Banco Pasárgada, mortos-vivos da associação de escritores natos, os boys da farmácia, dentre outros convivas. Cismou de comprar um tapete vermelho para colocar em pratica uma ideia incrível: estendê-lo na passarela da entrada, sempre que recebesse um visitante. Pensou que tivesse visto, mas, não viu coisa parecida num filme do Buñuel.

Numa manhã de domingo, tocaram a campainha. “Quem será a essa hora?”. Espiou pela janela da sala e viu que havia um grupo de pessoas aglomeradas defronte ao portão. Apesar da visão arruinada, reconheceu dois dos seus cincos irmãos no meio da comitiva. “Por que não ligaram antes?”. Não possuía um telefone em casa. Como era o costume, ralhou com a cachorra, catou o felpudo tapete vermelho detrás do sofá, abriu a porta e pediu pro povo ter um pouquinho de paciência que ele já iria abrir o portão, como de fato o fez. “Sejam bem vindos, amigos. Vamos entrando…”.

A turma estava borocoxô. Um dos irmãos, aquele de quem mais gostava, balbuciou que, infelizmente, as notícias não eram boas. “Por que você não tem um telefone em casa, criatura?”, alguém quis saber. Faltava um telefone em casa. Sobrava descrença. Foi informado que o filho tinha sido alvejado por uma bala perdida, durante um passeio de feriado num subúrbio da Cidade Maravilhosa. “A vista lá de cima do Pão de Açúcar é uma coisa maravilhosa também”, pensou, num lampejo de deslumbramento. Era uma pena. Gostava tanto do Rio. Gostava tanto do filho. Sentou sobre o tapete e chorou, desbragadamente, amparado pelas pessoas, observado por Deus e lambido nas mãos pela cadelinha, que escapou alegre pela rua e acabou atropelada pelo caminhão de lixo, um trambolho fedorento que despejava chorume, tristeza e nunca passava aos domingos, exceto para dar números finais a essa história real baseada em fatos imaginários.