Leio, logo tusso (carpe diem)

Leio, logo tusso (carpe diem)

Amigos, algum dia ainda escreverei um “J’accuse” para denunciar o bullying que venho sofrendo há anos do Carlos Willian. Sim, o famigerado editor desta revista é, digamos, uma espécie de Robert Mitchum em “O Mensageiro do Diabo”, sempre disposto a perseguir inocentes. O sujeitinho me encontra e logo pergunta coisas do tipo “Tem texto novo?”, geralmente com as mãos úmidas de suor sobre os meus ombros. Sem limites, ele ainda costuma entupir a minha caixa de mensagens com ordens absurdas como “Escreva sobre a ararinha azul” ou “Espero um artigo analisando a crise na Ucrânia”, além de diariamente enviar emissários pedindo artigos que nunca prometi. Quando resolvo ceder e remeto a ele algumas mal traçadas, a agrura segue por outra vertente: “O título não está bom”, “Ficou longo”, “Prefere as frases em latim entre aspas?”, numa toada enervante. Não só: publicado qualquer texto meu, poucos minutos depois as cobranças recomeçam — “Tem mais?”. O inferno, Jean-Paul, é “o” outro — ou, dito de outra maneira, o Carlos Willian no modo editor.

Estou em busca, porém, da famosa qualidade de vida, e “conter o Carlos Willian” é o item número um da minha lista, bem antes de “fazer exercícios” e “beber menos”. O plano é o seguinte: a partir de hoje, escreverei uma espécie de coluna sobre as minhas experiências com livros, filmes, músicas e tudo o mais que Freud afirmava ser necessário para seguirmos ligeiramente saudáveis na porca vida que nos coube, as tais “gratificações substitutivas” e “poderosas diversões” (o terceiro paliativo que nos ajuda neste vale de lágrimas, ensinou o vienense, seriam as “substâncias entorpecentes” — bem, eventualmente também escreverei sobre experiências gastronômicas e etílicas…). O id e o princípio do prazer como tema, eis o meu projeto de fuga.

Jorge Luis Borges: alguns livros, por certo, não leremos nunca

Negociado o acordo — eu escrevo a tal coluna, ainda que sem muita regularidade, e ele some da minha vida —, chegamos ao problema do título. Adepto do centralismo democrático, o nosso Lênin da Revista Bula impôs “Carpe Diem”, como no verso hedonista de Horácio nos mandando deixar de ser bestas e partir logo pra farra. Escolado, aceitei sem discutir (e, pretenso polímata que sou, imagino que alguns leitores apontarão o dedo inquisidor contra mim e berrarão “Aposto que você nunca leu Heidegger em alemão” ou “Sei, escrevendo sobre jazz, logo você que gosta mesmo é de forró”, o que talvez me leve, no futuro, a mudar o nome da coluna para “As Aventuras do Barão de Münchausen”. A ver.)

Tudo resolvido e trocados os fios de bigode contratuais, faltava-me o tema desta estreia de hoje. O normal seria apresentar as minhas credenciais; entretanto, o triste fato é que não as tenho: escreverei sobre livros sem jamais ter estudado crítica literária, darei palpites musicais mesmo não sabendo patavina do tema, comentarei filmes a despeito do meu conhecido e divulgado gosto por desenhos animados e séries idiotas. Sim, humildes leitores, estou atacado de húbris intelectual.

Mas… Mas a ideia é escrever sobre experiências e tentar transmitir sensações com um décimo do talento que, digamos, M.F.K. Fisher, aquela velhinha que veio ao mundo para nos humilhar com o seu savoir-faire, tinha para nos guiar nos labirintos da alta gastronomia. E para isto eu talvez tenha pedigree: vivo entre “gratificações substitutivas” há muitos anos. Daí porque, pensei, a melhor forma de me apresentar seria mostrar que me aposentei do mundo e vivo entre livros, com pouca higiene diária e sem muito contato com vós outros, ignaros mortais. Sim, sim, apresento-me e espero sinceramente que não fujam correndo para as montanhas.

Não sou moreno alto, bonito e sensual, mas garanto a vocês que leio. Vivo entre livros e papéis e tenho a casa hoje totalmente colonizada por livros — para ler todos, rogo para que exista em mim o gene da longevidade de Matusalém. “Leio, ergo sum” é o meu moto, e a minha baleia branca será sempre o próximo livro a ser lido. Posso não entender o que leio, mas venho tentando. Esta é, confesso, a minha única credencial; sendo única, dividirei com vocês tudo aquilo que entendi errado, li mal, citei fora de contexto e fingi que compreendia.

O que nos leva ao segundo tema de hoje: por que cargas d’água alguém se transforma em bibliomaníaco? Respondo sem hesitação: por azar. É curioso: pouco se escreve sobre as agruras do vício literário, mas há toda uma literatura narrando certa forma de “salvação”, religiosa ou não, alcançada com a ajuda de livros, desde o fenomenal “Confissões”, de Santo Agostinho (“Tolle lege”, ouvia o pobre santo ainda vivendo em pecado), a “How Literature Saved My Life”, do escritor David Shields, sem esquecer o cri de coeur de Doris Lessing nas suas memórias, “Under My Skin”: “I read, I read, I read, I was reading to save my life”. Besteira, besteira, besteira, digo eu. A leitura desenfreada traz, é claro, benefícios, sobretudo a aditiva liberdade que dela decorre (tema que deixo para outra coluna); os males são, contudo, amplamente superiores. Acumular livros é, na verdade, deitar fora a eternamente útil lição do “Eclesiastes”: “De resto, meu filho, quanto a maior número de palavras que estas, fica sabendo que se podem multiplicar os livros a não mais acabar, e o estudo se torna uma fadiga para o corpo”. Sábias palavras: qualquer vício é um cálice que deve ser afastado de pronto (vem-me à mente agora a imagem de um pobre viciado pedindo esmola, “Me arruma um troco pra comprar pão?”, e ouvindo a dura resposta, “Não, você vai gastar com livros!”). Duvidam e creem que exagero? Pois vejamos.

Doris Lessing: Eu lia, lia, não parava de ler. Estava lendo para salvar minha vida

Primeiro, há a desorganização das finanças. Quem prefere comprar todas as traduções de “Ulisses” a guardar os suados cobres jamais fará fortuna, é claro. Um Rockefeller ou um Bill Gates só compram livros valiosos, se é que o fazem, depois de economizarem a vida toda até no pão com média. E compram como negócio, não pelo prazer da leitura. Admito que talvez haja alguma forma de satisfação emocional quando se vive modicamente como consequência dos gastos com livros, mas, se fazer voto de pobreza é regra para todo bibliófilo, qualquer conforto espiritual que isso possa trazer será fartamente desequilibrado pelo pecado capital que nos aflige, a inveja. A insidiosa invidia. Dói, sabiam? Vai-se à casa do vizinho despreocupadamente e, bum!, surge ali a tentação: algum livro que se deseja com a força de um Iago diagnosticado com TOC extremo. Nublados ficam os dias, e a simples visão do vizinho no elevador traz ânsias homicidas; atacados de Shadenfreude, chegamos a sonhar com enxames de traças devorando a biblioteca alheia. (O coletivo do maldito artrópode é mesmo “enxame”? Vai “enxame” mesmo.) Não é uma vida fácil, muito menos digna.

Além das aflições da alma, há as físicas. Somos propensos a doenças pulmonares, por exemplo. Minha vida pode ser resumida assim: leio, pago impostos e tusso. A poeira é nossa companheira e não nos faltará. Se a poeira está conosco, quem estará contra nós? Tusso, saudáveis leitores, tusso no horário comercial e nas horas de lazer; tusso acordado e tusso dormindo. Sim, tusso, e tossir talvez até seja café pequeno diante dos problemas psicológicos e psiquiátricos que o excesso de leituras traz. O mais evidente, claro, é o sestro acumulativo; creio mesmo que li em algum lugar que “síndrome de Diógenes” já é doença catalogada no CID. Mas o poço não tem fundo, ou antes, o poço tem pré-sal. Acompanha-nos uma permanente angústia, um zumbido no ouvido nos dizendo que não será possível ler todos os livros do mundo — aliás, aí está a Wikipédia me lembrando que somente cinco países, Estados Unidos, China, Rússia, Reino Unido e Alemanha, põem no mercado mais de um milhão de livros por ano, e calcula-se que mais de 100 milhões de livros tenham sido publicados desde o século 15, donde o lamento de Mallarmé, “A carne é triste, sim, e eu li todos os livros”, hoje só pode ser levado a sério como hipérbole. (Curiosamente, o anúncio de que existem livros demais no mundo foi feito pelo mexicano Gabriel Zaid num — onde mais? — livro precioso, “Los Demasiados Libros”.) Com esses números inflacionados, o fracasso no trabalho de formiguinha de La Fontaine juntadora de livros, percebe-se, é certo (Jorge Luis Borges foi mais otimista quando escreveu que “alguno habrá que no leeremos nunca”; algum, apenas algum não seria lido, acreditava o velho Borges).

Não é só: na categoria sofrimento, mais angústia vem com a luta que se trava para se tentar organizar minimamente todos aqueles volumes espalhados pelos cômodos. Perdemos tempo nessa faina até que a sabedoria — ou seja, o reconhecimento da derrota — nos chegue. Eu, por exemplo, atualmente divido os livros usando apenas as três categorias que Thomas Jefferson, um nosso confrade, adotava na sua biblioteca: catalogo-os em “memória”, “razão” e “imaginação” — deixo-os mais ou menos ao deus-dará, portanto, e agora leio somente o que encontro, nunca o que busco, e isso talvez não seja de todo mau caso se siga a máxima de Heráclito, “Se não buscas o inesperado, não o encontrarás” (sim, o DSM-5 passou por nós e fixou residência — um psicanalista pode até dizer que, avessos ao contato humano, transformamos nossas bibliotecas em ventres maternos dos quais nos recusamos a sair). Talvez também console pensar que, mesmo desorganizada, uma biblioteca é uma maneira de tentar compreender e dar coerência ao mundo, um contraste necessário com o nosso caos interior; alguma desorganização, aliás, evita que o “suave tédio da ordem” tome conta dos livros, como escreveu Walter Benjamin em “Desempacotando Minha Biblioteca”, o seu imperdível “discurso sobre o colecionador”. Longe de mim tentar transmitir qualquer certeza; sou, já viram, um homem cheio de dúvidas e sigo então pensando um pouco como G.K. Chesterton, que, perguntado certa vez sobre o que estaria errado com o mundo, disse simplesmente “Eu estou”. Eu também estou, mas os meus livros não estão.

Talvez também console pensar que, mesmo desorganizada, uma biblioteca é uma maneira de tentar compreender e dar coerência ao mundo, um contraste necessário com o nosso caos interior

E livros em excesso atraem chatos, que brotam aos montes dos lugares mais inesperados. Mandam textos “para uns palpitezinhos”, pedem que os indiquemos para editoras, indagam, no meio de uma noitada etílica, o que achamos de “Os Irmãos Karamázov” ou qual seria o “melhor livro já escrito” (um único!), perguntas tipificadas no Código Penal como crimes de lesa-inteligência. O chato depurado, quintessencial, aquele a quem chamo “catirete” (tenho uma patoá próprio, acostumem-se), é aquele que também costuma perguntar, em estupor diante das nossas estantes, “Nossa, já leu todos?”, sem nunca lhe passar pela mente parca de neurônios que toda biblioteca pessoal é sobretudo um projeto de leitura — não satisfeito, ele depois ainda pede livros emprestados, o sacripanta.

Tal como as pragas do Egito, muitos são, já perceberam, os males que nos atingem. Existe até certa crença de que o cidadão lido deva ser consultado sobre os mais diversos assuntos; é, eu diria, a prática do caetano-velosismo. Dê espaço a um leitor inveterado e ele o ocupará — somos opiniáticos. Tossimos e palpitamos sobre pós-estruturalismo, MPB, cinema iraniano, futebol americano, cultura maori… Ocorre que um especialista em tudo é, evidentemente, um especialista em nada — e eis aqui outra aflição. Vejam o meu caso: tenho no Kindle coleções de livros sobre “armas” e “Bálcãs”, temas absolutamente distantes da minha vida cotidiana (eu sei, eu sei, buscarei tratamento); sou, assim, uma espécie de confirmação da Lei de Rothbard: tendemos a nos especializar naquilo em que somos piores.

Bem, e o que mais? Muito mais, ai de mim, muito mais: anos e anos de acumulação doentia de repente levam a uma centelha perigosamente próxima da fronteira da loucura total. “Por que não colecionar livros raros?”, pergunta-se o incauto em alguma manhã especialmente tediosa, mal sabendo que acabou de descobrir novos círculos no Inferno de Dante ao ouvir esse fiat lux transformador (ou melhor, esse eureca pinelizador). É a “confirmação”, a queda no abismo que encaminhará de vez o coitado para os reinos das disfunções neuronais, aquele estado nebuloso em que as sinapses não se completam de maneira coerente (Pedro Nava diz que “confirmar”, em Minas, significa enlouquecer, destino certo de nós todos). De acumulador se passa a colecionador, um tipo estranho que gasta os tubos com livros autografados e primeiras edições. De mal das pernas se chega à bancarrota, em outras palavras.

Não acabou. Simón Bolívar, deprimido, lamentava que toda a sua vida havia sido como arar no mar. Acumular livros é obra semelhante, sem dúvida: “habent sua fata libelli”, diziam os romanos. Morto o azarado padecente de bibliofilia, dificilmente aparecerá algum parente para lhe preservar o legado. Axioma de Marcelo Franco: não existe filho ou primo que queira ser arqueólogo de vícios literários alheios. Creiam-me, eu mesmo já saí de velórios para comprar a biblioteca do defunto, sabendo que elas costumeiramente são vendidas a sebos, por preço vil, antes mesmo de o infeliz baixar à terra. Por isso, é quase como ganhar na loteria ter um neto como Sasha Abramsky, que vendeu a biblioteca do avô morto tendo antes o cuidado de escrever um delicado livro sobre a casa atulhada de livros que o encantava, “The House of Twenty Thousand Books”. Abramsky deu ares civilizados ao leilão de todo um projeto de vida: fica-se livre dos trambolhos, mas, noblesse oblige, divulga-se como tudo era lindo e encantador e coisa e tal. Às vezes penso que o melhor seria fazer como o detetive Pepe Carvalho, personagem de Manuel Vázquez Montalbán, que criou um sistema único para não amontoar livros: queima-os na lareira, pensando vagarosa e filosoficamente naquele que será o escolhido da noite para arder nas chamas. Radical forma de biblioclastia, sem dúvida, mas elegante.

É isto: creio-me devidamente apresentado. Não nego, sei que pareço ser um tanto doido (“Admito: sou interno de um hospício”); porém, alego em minha defesa a atenuante de que sofro de uma “loucura mansa”, “a gentle madness”, título de um livro de Nicholas Basbanes, outro envolvido com a colonização livresca. (E Hoolbrook Jackson, mais um pobre que se debruçou sobre a bibliofilia — o seu “The Anatomy of Bibliomania”, criminosamente ainda não traduzido aqui no Florão, é uma obra-prima —, afirmava que se tratava de uma mania menos perigosa do que a sanidade dos sãos. Confere e confirmo.) Ou talvez não tão mansa: se a biblioteca define o seu dono, depositem-me imediatamente num manicômio. De qualquer modo, louco ou não (“Se estou louco, tudo bem, pensou Moisés Herzog”), há estropiados piores do que eu que seguem funcionais — somente no meu edifício, conto um que berra “Vai, Parmêra” da sacada, outro que joga boliche, mais um que desce pelas escadas carregando tralhas de pescaria (pescar e jogar boliche empatando com colecionar selos na categoria “atividades mais chatas já inventadas”, ainda que seja forçoso reconhecer que colecionar selos provavelmente tenha a mesma conotação ritual de juntar livros). Poderia ser pior, respiro aliviado, e filosoficamente recordo que há qualquer coisa de utópico naquele que aguarda a famosa era do ócio criativo, prevista por Domenico de Masi e possivelmente adiada para as calendas, a fim de se dedicar aos livros ainda não lidos; algum respeito, assim, talvez nos seja devido.

Peroro, enfim. Autoridades presentes, minhas senhoras e meus senhores: neste momento solene e auspicioso, declaro, portanto, inaugurada esta coluna “Carpe Diem”. Obrigado!

(Creio ouvir ao longe, como se lê nas anotações feitas em antigas transcrições de debates parlamentares, “fortes apupos e não apoiados”. Faço o pelo-sinal, murmuro um “Senhor, tende piedade de mim” e peço indulgência aos leitores; cautelosamente, contudo — más sabe el diablo por viejo que por diablo —, também azeito os meus trabucos para eventuais trocas de chumbo. Adiante!)