A história de Geraldo Vandré: o maior enigma da música brasileira

A história de Geraldo Vandré: o maior enigma da música brasileira

Em verdade, o título do livro poderia ser “O mito que o fez perder o norte”. Geraldo Pedrosa de Araújo Dias, conhecido como Geraldo Vandré, nasceu em João Pessoa, Paraíba, em 1935 — ano da Intentona Comunista. Ele adotou seu nome artístico a partir do nome de seu pai, um médico otorrinolaringologista e comunista chamado José Vandregiselo de Araújo Dias.

Desde menino, ele imaginava seu futuro de uma maneira quase premonitória: tornar-se-ia um cantor de rádio. Possuindo um espírito rebelde, seus pais optaram por mantê-lo em um colégio com regime de internato, em uma cidade próxima à capital. Lá, ele começou a ouvir maracatu, bandas de música, cantadores de feira e a literatura de cordel, que permearam todos os seus escritos, principalmente no que diz respeito ao rigor do estilo, como em “Réquiem para Matraga”, onde ele faz uso extenso de redondilhas menores:

Vim aqui só pra dizer
Ninguém há de me calar
Se alguém tem que morrer
Que seja pra melhorar
Tanta vida pra viver
Tanta vida a se acabar
Com tanto pra se fazer
Com tanto pra se salvar
Você que não me entendeu
Não perde por esperar

Perseguido politicamente, seu pai se muda para o Sudeste do Brasil, levando toda a família consigo. Depois de uma breve passagem por Juiz de Fora, Minas Gerais, a família estabelece-se no Rio de Janeiro, então capital federal. Acontece aí uma junção perfeita: “juntou-se a fome com a vontade de comer”. Vandré estava agora no epicentro cultural do Brasil, e sua carreira musical decolou a partir de então. Seu primeiro parceiro foi Carlos Lyra, com quem compôs “Aruanda” e “Quem quiser encontrar o amor”. Com Alaíde Costa, criou “Canção do breve amor” e “Canção do amor sem fim”.

Geraldo Vandré: o homem que disse não
O Homem Que Disse Não, de Jorge Fernando dos Santos (‎Geração Editorial, 280 páginas)

Vandré sempre defendeu que “arte não é panfleto!”. Assim, tornou-se advogado e ingressou como funcionário público na antiga Superintendência Nacional de Abastecimento (SUNAB). Outro parceiro musical que conseguiu foi o virtuoso Baden Powell, violonista, compositor, arranjador e intérprete. Com ele, Vandré criou as belíssimas canções “Fim de tristeza”, “Nosso amor”, “Samba de mudar”, “Se a tristeza chegar” e “Rosa flor”.

Vandré se autodenominava um compositor do amor, seja ele particular, por uma mulher, ou geral, por todo um povo. A primeira música que compôs sozinho foi “Fica mal com Deus”, que traz em sua essência seu histórico nordestino, marcado pelas redondilhas que aprendeu ainda criança com o cordel.

Conseguiu desenvolver uma carreira que não mantinha ligações diretas com a bossa nova, que admirava. Contudo, por ser mais poeta do que músico, decidiu escrever sobre a realidade nacional que então vivenciava e com a qual discordava. Assim o fez. Outro fato interessante, que merece destaque, é que mesmo antes de participar dos festivais e se tornar nacionalmente conhecido, ele já havia sido prisioneiro do regime militar, ou seja, era um homem visado pela repressão.

Após gravar duas músicas do então desconhecido estudante de arquitetura Chico Buarque, Vandré conquistou o primeiro lugar em um festival de música, no 2º Festival da MPB da TV Excelsior, com a marcha-rancho “Porta-estandarte”, composta em parceria com Fernando Lona e interpretada por Airto Moreira. A partir de então, constituiu o Quarteto Novo, formado por Hermeto Paschoal, Heraldo Monte, Airto Moreira e Theo Barros.

Em 1966, Vandré inscreve “Disparada”, composta em parceria com Theo Barros, no 2º Festival da MPB da TV Record. Ao final do festival, divide o prêmio de primeiro lugar com “A banda”, de Chico Buarque. Todavia, essa disputa provocou em São Paulo uma efervescência cultural que se estendeu Brasil afora, devido à originalidade da obra de Vandré, um quase sertanejo, com um poema perfeito se contrapondo a uma marchinha representativa do Brasil mais simplório.

Com o mundo em ebulição pela Guerra Fria, Primavera de Praga, guerra do Vietnã, morte de Martin Luther King e, também, pelo endurecimento do governo militar no Brasil, Geraldo Vandré cada vez mais se imergia em letras políticas, contra a ditadura e a favor do povo brasileiro. Surge então o 3º Festival FIC, da rede Globo, no qual Vandré inscreve a obra “Pra não dizer que não falei das flores”, música de dois acordes, com melodia muito simples, mas com letra instigante, versos alexandrinos e de rimas pobres, que construiu um canto geral. Mesmo que a sua canção tenha se tornado um hino à liberdade e à contestação do que não faz sentido, recebeu como premiação o segundo lugar, tendo o primeiro sido conquistado por Tom e Chico pela canção “Sabiá”, cuja melodia era rica em acordes maravilhosos, complexos, e letra que remetia à imagem do lirismo saudosista de Gonçalves Dias.

Após o festival, a perseguição a Vandré pelo governo militar vigente se intensificou. Inicialmente, censuraram sua música por incitar à subversão, e por isso recolheram todas as cópias discográficas à venda. Entretanto, 180 mil cópias já haviam sido vendidas.

No contexto da época, foi editado o infame AI-5, que se sobrepôs à Constituição Federal, ao final de 1968, o ano que não terminou. Vandré, então, realizou seus dois últimos shows, sempre acompanhado de músicos de primeira linha, em Goiânia e Anápolis, respectivamente.

Depois, se dirigiu para o Rio de Janeiro e entrou para a clandestinidade, tornando-se uma das pessoas mais perseguidas pelos militares. No final daquele mesmo ano, compôs com Geraldo Azevedo aquela que seria sua última canção antes de deixar o Brasil, “Canção da Despedida” (“já vou embora, mas sei que vou voltar…”). Exilou-se no Uruguai, depois no Chile e na Europa.

Geraldo Vandré
Geraldo Vandré

Muito se fala sobre a personalidade de Vandré, mas o que é claro nesta obra biográfica é que ele era um iconoclasta, dotado de um temperamento difícil, cujo convívio diário sempre era complexo. Não ficou louco e nunca o foi; o fato é que ele nunca valorizou a fama, o elogio fútil e o dinheiro, o que gerou inúmeros equívocos acerca de seu comportamento anti-hipócrita. Como ele mesmo dizia: “Eu digo as coisas em que acredito, com dois, com vinte ou sem nenhum acorde. O dia em que não puder dizer, paro de cantar”. O resultado de seu exílio foi uma morte em vida: seu envolvimento com álcool e drogas o torturou de tal maneira que as alucinações que tinha eram compensatórias.

Ao retornar do exílio, proferiu a seguinte frase: “Geraldo Vandré morreu”. Sobre seu retorno, ninguém jamais saberá o que aconteceu, pois as informações são contraditórias e o folclore criado em torno do fato é muito diverso, com conotações antagônicas na maioria das vezes. Foi torturado ao chegar? Ninguém sabe ao certo, pois ele mesmo jamais se pronunciou sobre isso.

Buscou então, como advogado que é, seus direitos de forma judicial: pleiteou sua reintegração aos quadros da SUNAB, como o advogado Geraldo Pedrosa de Araújo Dias. Nunca aceitou a pecha de anistiado, por isso nunca assinou o pedido de anistia.

Por fim, o que se extrai da biografia desse artista tão polêmico e debatido por todas as mídias, é a história de um homem, oriundo do Nordeste, que veio para o Sudeste com o objetivo de alcançar seu maior sonho, que era ser cantor de rádio, e conseguiu isso de maneira avassaladora ao se tornar o criador da música-símbolo de todo e qualquer ato de contestação no Brasil, “Caminhando”. Para encerrar, cito um poema dele, por ele declamado, durante a apresentação de Joan Baez, em São Paulo:

Pra quem queria
O meu cantar,
O meu cantar;
Pra quem pensava
Que podia me calar,
Aquele silêncio
De não se aguentar…