Às vezes, tiram de nós quem deveria ficar para sempre

Às vezes, tiram de nós quem deveria ficar para sempre

No meu aniversário de 7 anos, ganhei uma boneca de pano feita pela minha avó. Foi o melhor presente de todos. Seus cabelos eram de lã acastanhada e os olhos, de tinta verde; o nariz e os lábios tinham um contorno perfeito e um vestidinho de crochê adornava a boneca que, curiosamente, tinha poderes mágicos. Minha avó falou: “quando você sentir saudade de mim, abrace a boneca e estarei contigo”.

Minha avó sabia das coisas. Pelo seu sorriso desembaraçado e sua gargalhada gostosa, via-se que ela era alegre e otimista. Mas, no seu andar arrastado pelas dores da artrose e em seu olhar cansado pela velhice, vovó sabia que para ser feliz também se é triste.

Eu me lembro das suas mãos. Eram mãos que araram o solo seco pra fazer nascer café e sovaram a massa pra fazer crescer sonhos polvilhados com açúcar. Aquelas mãos bordaram panos de prato, podaram roseiras no jardim e colheram hortelã no quintal da casa. As palmas ásperas e os dorsos manchados revelavam os anos em que ela trabalhou na roça durante a juventude; mas a dureza do seu passado não a impedia de enfeitar as unhas, sempre firmes e compridas, exibindo esmaltes de cores vivas. As mãos — enrugadas, sofridas e realizadas — que seguravam o terço nos dias de reza eram as mesmas mãos da avó que penteava os cabelos dos netos.

Tem um poema de Mario Quintana em que ele fala das mãos do seu pai: “As tuas mãos têm grossas veias como cordas azuis sobre um fundo de manchas já cor de terra — como são belas as tuas mãos — pelo quanto lidaram, acariciaram ou fremiram na nobre cólera dos justos…”.

Ah, Vovó! Como sinto falta da vida que transbordava das tuas mãos: o pão quentinho, o café cheiroso, a rosa enfeitando a jarra de vidro, o pano bordado, a letra torta em suas cartas, o cafuné que vinha de brinde quando penteava os meus cabelos.

Infelizmente, não tenho mais aquela boneca (não sei aonde ela foi parar); mas, na porta da minha geladeira, vejo um pano de prato velho e me lembro das mãos que acalentaram a minha infância.

Mesmo que, às vezes, tirem de nós quem deveria viver para sempre, ainda ficamos com as histórias. Restam-nos fotos envelhecidas, tecidos rasgados, quartos vazios e brinquedos perdidos (minha boneca). Mas, também, misteriosamente, cresce um roseiral das mudas da antiga roseira que foram replantadas em um novo jardim. A lida se dá em solo árido e nas preces feitas nas contas do terço. Em quase tudo, pode haver beleza e tristeza — mas sempre haverá esperança.

E, após perdas e despedidas, ficamos com toda vida transfigurada pelas mãos ternas e nodosas que passaram por nós; como quem abraça a saudade para reencontrar a avó em uma noite sem bonecas de pano.